No ano anterior havíamos atravessado 76 Km do Espinhaço mineiro, partindo do povoado de Fechados e chegando em Lapinha da Serra. Fizemos uma linda travessia, em 6 dias de imersão no Cerrado. Decidimos voltar à região esse ano, desta vez, focando na seção ao sul da Serra do Cipó. Nosso roteiro se iniciou no pequeno povoado de Altamira, pertencente ao município de Nova União. Dali, rumamos para o norte, entrando na área do Parque Nacional da Serra do Cipó. Passamos pela Cachoeira Braúnas, pela Cachoeira Farofa de Cima e então alcançamos o Rio Cipó, bem próximo à Portaria Retiro do Parque Nacional. A partir dali, tomamos o oeste e depois o sul, passando pela Cachoeira Capão dos Palmitos e deixando a área do Parque. Continuamos rumando para o sul, passando pela Cachoeira Lagoa Dourada e pelo vale de mesmo nome, então pelo topo da Cachoeira Alta, até finalmente retornarmos para Altamira.
Nosso circuito foi bastante interessante por conta de diferentes aspectos, a começar pela visitação a essas cinco belíssimas cachoeiras. Tínhamos grande expectativa pela famosa Cachoeira Braúnas, e não fomos desapontados. Mas acabamos também nos surpreendendo com a beleza das demais quedas d'água. Outro aspecto interessante do circuito é que ele circunda o Cânion das Bandeirinhas pelo alto das montanhas. Com isso, proporciona uma perspectiva diferente daquela parte do Parque, a qual é usualmente visitada pelo fundo do cânion. Além disso, o circuito ainda atravessa o Lagoa Dourada, que diferentemente do que o nome sugere, na verdade, se trata de um lindo vale confinado por belas montanhas. Por fim, o circuito nos ofereceu as habituais paisagens do Espinhaço mineiro: campos verdejantes a perder vista, planaltos com 360° de montanhas no horizonte e noites super estreladas.
No ano anterior, realizamos um percentual considerável do percurso fora de unidades de conservação, onde frequentemente acabávamos passando por pastagens. Até mesmo dentro de algumas unidades, como o Parque Estadual da Serra do Intendente, encontramos muitos animais de criação. Nesse ano, grande parte do nosso circuito foi realizada dentro do Parque Nacional da Serra do Cipó. Tivemos a satisfação de encontrar uma situação bem mais controlada. Não encontramos gado, apenas alguns cavalos em pontos bem específicos. A flora parece bem preservada. Infelizmente, não tivemos muitos encontros com a fauna, o que costuma ser comum nas excursões pela região. Certamente, em parte pela própria característica elusiva da fauna do Cerrado. Ainda assim, tivemos a oportunidade de ver algumas seriemas junto ao Rio Cipó, um cágado também nas proximidades, algumas tocas, rastros, peixes em praticamente todos os poços, além de diversos pássaros. Destaque para os beija-flores que admiramos se banhando na Cachoeira Capão dos Palmitos, bem em frente ao nosso acampamento.
Foto: Patrícia Carvalho
O circuito foi realizado em 5 dias, com 4 pernoites em acampamento selvagem. A extensão total percorrida foi de 68 Km, com 2.972 metros de aclive acumulados e 3.245 metros de declive. A distribuição das distâncias ao longo dos dias foi bastante satisfatória. Em geral, começamos a caminhada em torno das 8 da manhã, e finalizávamos entre 2 e 3 horas da tarde. Assim como em outras excursões por regiões selvagens do Cerrado, as áreas de acampamento improvisadas tinham espaço muito limitado, terreno irregular e sensível. É extremamente recomendável estar em grupos de tamanho bem reduzido, com bom conhecimento dos princípios de mínimo impacto em áreas naturais. Em uma eventual repetição do circuito, certamente tentaríamos ajustar o roteiro para utilizar alguns outros pontos que identificamos como áreas melhores para pernoite.
Com exceção dos trechos próximos às portarias do Parque Nacional, todo o percurso possui orientação não trivial. Alguns trechos, como o acesso à Cachoeira Braúnas, apesar de não sinalizados, ainda possuem uma trilha mais evidente no solo, graças à passagem frequente de visitantes. Porém, existem áreas de navegação muito complicada, em especial, o trecho entre a Cachoeira Braúnas e a Cachoeira Farofa de Cima. Ali praticamente não há nenhuma trilha, e devido à geografia do local, composta por muitas montanhas indistintas, a navegação por carta é muito difícil, sendo extremamente recomendável o uso de um bom dispositivo GPS. Falando em orientação, uma curiosidade geológica é que, assim como notamos na Travessia Alto Palácio x Serra dos Alves, que fica na mesma região, os afloramentos rochosos nesse circuito estão sempre apontados para o oeste.
Nossa excursão foi realizada na segunda quinzena de maio de 2023. O período do outono é o meu favorito para essa região. As temperaturas estão mais brandas, ainda encontra-se água nos pontos de abastecimento e, ao mesmo tempo, os níveis dos rios não estão elevados a ponto de dificultar o cruzamento. A escolha da época correta foi importante para esse circuito. Num período chuvoso, teríamos tido dificuldades para cruzar o rio na Cachoeira Braúnas e realizar a "mini escalada" em horizontal pelas pedras na margem oposta do rio. Depois, no trecho de orientação mais complicada, foi necessário cruzar algumas vezes o Córrego Taioba. O mato alto dificultava encontrar bons pontos de passagem. Com o nível do rio elevado, seria um problema ainda pior. Dentre outras passagens por córregos, rios e charcos, as duas travessias do Rio Cipó também poderiam ter sido um problema. O rio é bem largo, e parece ter muitos tributários. Num período de chuvas, essas travessias tem potencial para serem bem arriscadas.
Já no vale da Lagoa Dourada, estávamos preocupados em não encontrar água no ponto que havíamos planejado para o último pernoite. Felizmente, o tempo ainda não estava árido o suficiente para secar os afluentes do Jaboticatubas. Conseguimos água ainda correndo no ponto pretendido, mas não sei se teríamos a mesma sorte no meio do inverno. As temperaturas que pegamos foram ligeiramente mais elevadas do que no ano anterior. Ao cair da noite, giravam em torno dos 15°C. Assim como da última vez, os ventos constantes ao anoitecer e no amanhecer diminuíam significativamente a sensação térmica, dificultando o jantar e qualquer outra atividade fora das barracas. O tempo parcialmente nublado em praticamente todos os dias foi um grande aliado para as caminhadas. Nos momentos em que tivemos que caminhar sob o sol direto, a temperatura chegava aos 30°C.
A logística para essa excursão foi uma das mais otimizadas que já executamos para essa região. Aproveitando o sucesso da viagem noturna em ônibus leito do ano anterior, repetimos a estratégia dessa vez. Partimos da rodoviária do Rio de Janeiro no final da noite, e no início da manhã estávamos na rodoviária de Belo Horizonte. O trajeto para Altamira possui cerca de 2,5 horas. Optamos por contratar uma van para nos levar diretamente para o início da trilha, a qual demos início na mesma manhã. No meio da tarde do último dia do circuito, tomamos a van de volta para Belo Horizonte, e ao final do dia, embarcamos de volta para o Rio. Com isso, gastamos com a viagem apenas os 5 dias da caminhada, fora as noites anterior e posterior nas viagens noturnas.
Foto: Catia Valdman
Um detalhe sobre o roteiro é que, apesar de termos iniciado e terminado nosso circuito em Altamira, nossos pontos de partida e término não foram exatamente os mesmos. Começamos a caminhada em Altamira de Cima, tomando a trilha para a Cachoeira Braúnas. Terminamos o circuito em Altamira de Baixo, descendo a trilha do Cruzeiro de Altamira. Entre os dois pontos existe uma estrada de terra de cerca de 8 Km de extensão, sem maiores atrativos, que deixamos de fora da caminhada para otimizar nosso tempo. A van nos deixou em Altamira de Cima, na "boca da trilha" para Braúnas e depois nos buscou em Altamira de Baixo.
Diário
22/05) Rio → BH → Altamira → Cachoeira Braúnas
Foto: Patricia Carvalho
Partimos da rodoviária do Rio de Janeiro às 23 horas da noite anterior, e chegamos em Belo Horizonte pouco antes das 6 da manhã. Tomamos café na rodoviária e às 7 horas embarcamos na van que havíamos contratado para nos transportar até Altamira. Fizemos uma viagem sem congestionamentos, alcançando Altamira de Baixo cerca de 2 horas depois. Fizemos um breve parada no Bar da Tânia, apenas para guardar algumas roupas limpas, que usaríamos após finalizar o circuito. Seguimos viagem por uma estrada de terra em condições razoáveis, por mais 8 Km, até Altamira de Cima, onde a van nos deixou. Às 9:25 demos início à caminhada, tomando a trilha para a famosa Cachoeira Braúnas.
Partimos dos 1.240 metros de altitude, e fomos ganhando gradativamente 200 metros adicionais de elevação, durante os primeiros 1,6 Km de trilha. Nesse ponto, cruzamos com a placa indicando a entrada na área do Parque Nacional da Serra do Cipó. Logo depois, passamos pelo Abrigo Garça, ponto de apoio do ICMBio. Avistamos um cavalo arreado próximo ao abrigo, mas não passamos por nenhum funcionário. A partir desse ponto, a trilha segue praticamente em declive constante até alcançar o poço da Cachoeira Braúnas, nos 1.175 metros de altitude. O dia estava muito agradável para caminhada, temperatura amena e cerca de 80% de cobertura de nuvens de altura mediana.
Foto: Catia Valdman
Próximo das 13:40, avistamos a belíssima Cachoeira. Ela possui duas seções. Na seção superior, existe uma queda d'água menor, e um primeiro poço bem generoso. Na seção inferior, a queda d'água é muito maior, assim como o segundo poço. Depois, suas águas correm para um rio confinado num vale estreito, ou um pequeno cânion, tributário do Ribeirão Bandeirinhas. A chegada à cachoeira é bastante marcante. A abordagem é feita através da montanha oposta à cachoeira, bem de frente para as quedas d'água. Como estamos num terreno cerca de 100 metros acima da queda principal, é possível apreciar as duas seções da cachoeira. Depois, a trilha segue descendo a montanha até encontrar o poço inferior.
A chegada à Braúnas foi encantadora, e ao mesmo tempo, apreensiva. Para dar continuidade ao nosso circuito, sabíamos que precisaríamos atravessar o cânion e subir a montanha oposta, até o nível do poço superior. Porém, não havia nenhuma rota aparente, nem para cruzar o curso d'água, muito menos para conduzir até o topo da cachoeira. A queda d'água é emoldurada por um grande paredão rochoso. À nossa esquerda, o paredão seguia vertical, imponente, formando o cânion à oeste, o qual conduz as águas do rio para o Ribeirão Bandeirinhas. A alternativa seria a subida pela direita, onde o paredão se mesclava com a serra à leste e, eventualmente, conseguiríamos serpentear por suas encostas até alcançar o topo.
Foto: Catia Valdman
O enorme poço estava convidativo para um mergulho, mas antes da diversão, decidimos explorar a área para descobrir como vencer aquele obstáculo. Ao contrário do que imaginávamos, o tracklog que utilizávamos como referência indicava uma subida pelo oeste, junto ao paredão do cânion. Descrentes, nos aproximamos do poção e seguimos na direção indicada, acompanhando o curso d'água e tentando identificar uma forma de cruzar o rio. De fato, acabamos encontrando uma passagem sob as pedras que sequer exigiu descalçar as botas. Porém, a margem oposta é estreita. O paredão vertical mergulha praticamente de imediato dentro d'água. Ainda assim, conseguimos nos segurar à rocha, e cuidadosamente nos mover lateralmente, agora, contra o sentido do rio, e de volta na direção do poço. Ali, se forma uma pequena península, onde identificamos rastro de uma trilha.
A trilha é bem íngreme e estreita, tomada pela vegetação. Ela se vale de uma fissura na parede do cânion para alcançar o topo. Seguimos por vários metros para confirmar o traçado. Nos convencemos de que ela nos conduziria até o topo. Naquele momento, estávamos sem as cargueiras para facilitar a exploração. Ainda havia luz do sol o suficiente para retornarmos, pegar as mochilas e seguir viagem. Porém, não tínhamos certeza de que tipo de terreno encontraríamos lá em cima. Optamos pelo pernoite na parte inferior. A área disponível para as barracas era mínima, o terreno era rochoso e desnivelado, mas bom o suficiente para uma noite. Preferimos postergar a subida para o dia seguinte.
Quebramos o protocolo e, antes mesmo de montar o acampamento, corremos para o banho no poção. Ainda teríamos algumas horas de claridade, mas naquele local confinado entre as montanhas, muito em breve ficaríamos sem a iluminação direta do Sol. A água estava congelante! Mesmo assim, valeu a pena o mergulho naquele poço incrível! Após o banho jogamos um pouco de cartas, jantamos e fomos dormir pouco depois das 20h. Faziam 10°C, com pouco vento.
23/05) Cachoeira Braúnas → Cachoeira Farofa de Cima
Foto: Catia Valdman
Nosso primeiro dia de caminhada nos exigiu vencer apenas 10 Km, pouco desnível acumulado, numa trilha de fácil orientação. Mas nosso segundo dia não seria tão simples. Iniciamos às 8:10, realizando a subida ao topo da Braúnas. Antes, colocamos nossos eletrônicos em sacos impermeáveis para protegê-los no caso de um mergulho indesejado nas águas frias da cachoeira. Repetimos o trajeto que havíamos ensaiado no dia anterior, mas agora com as cargueiras nas costas. Felizmente, todo o grupo conseguiu cruzar o rio, e realizar a pequena escalada em horizontal, sem acabar dentro d'água. Pouco a pouco, negociamos com a vegetação nossa passagem dentro da trilha, na canaleta de subida para o topo. Levamos 40 minutos para vencer esse etapa. Lá em cima, era possível avistar a queda d'água superior ao longe, mas nossa rota não passava por ela. Tomamos a direita para uma breve visita ao ponto da queda d'água inferior, e então retornamos seguindo em direção ao nosso destino do dia: a Cachoeira Farofa de Cima.
Praticamente todo o segundo dia de caminhada foi feito sem trilha demarcada. Atravessamos extensos capinzais, algumas vezes, quase da nossa altura. Em alguns trechos o mato era tão denso que precisávamos dobrá-lo à nossa frente, formando um tapete sobre o qual caminhávamos, sem que as botas tivessem a chance de tocar o solo, sustentadas apenas pela espessa trama de capim abaixo. Ao nos aproximarmos de algum córrego, em particular nos pontos de travessia do Córrego Taioba, o capim ganhava especial vitalidade. Era um desafio identificar a melhor forma de cruzar os cursos d'água, buscando algum solo firme em meio ao terreno lamacento e tomado pelo mato. Nesse dia, percorrermos uma quilometragem praticamente igual a do dia anterior, porém, levamos 50% a mais de tempo. A orientação foi realizada basicamente por GPS, uma vez que as paisagens amplas no entorno, com montanhas indistintas, dificilmente forneciam referências claros para a orientação pela carta.
Apesar de trabalhoso, o percurso nos proporcionou belas visões das montanhas da região, em especial, uma privilegiada vista a partir da borda superior do Cânion das Bandeirinhas. Com 9,7 Km de percurso, já bem próximos do nosso destino, interceptamos a trilha que vem da Casa dos Currais, ponto de apoio conhecido da Travessia Alto Palácio x Serra dos Alves. A partir desse ponto, finalmente surge uma trilha mais demarcada no chão, facilitando a orientação. Alcançamos o topo da Cachoeira Farofa de Cima às 14:50. Para uma distribuição mais equilibrada das distâncias, o plano seria seguir viagem e montar acampamento apenas na parte de baixo dessa cachoeira. Porém, lá em cima encontramos uma área bastante conveniente para a montagem das barracas, enquanto que, a julgar pelo que dali avistávamos, lá em baixo não teríamos facilidade de encontrar um terreno favorável. Decidimos pernoitar no topo mesmo.
Foto: Patrícia Carvalho
Montamos o acampamento e fomos tomar banho nos pequenos poços formados pelo Córrego da Farofa, antes de despencar da montanha. A água estava talvez tão gelada quanto no dia anterior. O céu bastante nublado havia nos poupado do Sol durante a batalha contra a vegetação do Cerrado. Mas agora, molhados no topo da cachoeira, torcíamos para que ele brilhasse através de algumas brechas entre as nuvens para nos aquecer. Nosso ponto de pernoite nos proporcionou um belo pôr do sol e uma bela contemplação das estrelas. A Lua, no início do crescente, encontrava-se em uma bonita conjunção com Vênus. Por outro lado, expostos no topo da montanha, tivemos que buscar abrigo do vento descendo um pequeno barranco ao lado do acampamento para cozinhar.
Faziam 17°C ao anoitecer. A temperatura permaneceu estável nas próximas horas, mas o vento gelado e constante fazia a sensação térmica despencar. Na madrugada, percebemos que vento havia aumentado. As barracas se sacudiam e se curvavam, atrapalhando nosso descanso. Fosse a época de verão, teria sido uma péssima escolha estar ali tão expostos. Às vezes, ouvíamos gotas água contra a lona da barraca, mas não ficava claro se era chuva, ou água da cachoeira projetada pelo vento. Em dado momento, o vento conseguiu arrancar um espeque de uma barraca, deixando-a ainda mais instável. Saímos na escuridão para realizar os reparos na instalação, e aproveitamos para recolher as roupas que, por sorte, não foram arrancadas do nosso varal improvisado.
24/05) Cachoeira Farofa de Cima → Cachoeira Capão dos Palmitos
Acordamos às 6 da manhã ainda com o som do vento. Levantamos, preparamos o café da manhã e desmontamos acampamento. No nosso terceiro dia de caminhada teríamos uma distância maior para percorrer, além da incerteza sobre as condições de travessia do Rio Cipó. A nosso favor, estávamos agora numa área mais frequentada do Parque Nacional, e certamente não teríamos problemas com a navegação. Às 8:15 começamos a descida em direção ao poço da Cachoeira da Farofa, alguns ainda relutantes em retirar os anoraks. Durante a descida, conseguimos pela primeira vez ter a visão frontal da cachoeira, que até então não nos era permitida a partir do seu topo. Quando alcançamos a bifurcação entre a trilha para o poço e a continuação da trilha principal para a portaria do Parque e o Rio Cipó, deixamos nossas cargueiras na mata. Seguimos leves pelos 400 metros seguintes até o poço.
Após a passagem pela Braúnas, nossas expectativas para as próximas cachoeiras haviam baixado bastante. Fomos surpreendidos pela beleza, tanto da queda d'água, quanto do poço da Farofa de Cima. Não fosse o tempo limitado, provavelmente teríamos encarado o frio e tomado um banho no seu poço. O local é bastante úmido, confinado pelas pedras e vegetação. O poço é bem arredondado e possui pedras no entorno que parecem formar uma borda projetada cuidadosamente para adorná-lo. Após algumas fotos, retornamos o trecho de trilha até as cargueiras, e continuamos a caminhada em direção ao Rio Cipó.
O trecho seguinte é uma descida interminável, amenizada por mais uma agradável surpresa: o Pocinho Mágico. Até então, um nome curioso no mapa, se revelou um local muitíssimo agradável. Sua entrada discreta ficava à direita da trilha, e poderia ser perdida por um desavisado. Entrando poucos metros na mata, achamos o poço redondo de águas claríssimas, iluminado pelo (pouco) Sol e cheio de peixinhos. Dessa vez, foi inevitável o mergulho. Gastamos quase meia hora por ali, e continuamos a descida.
Após descer dos 1.220 metros no topo da Farofa de Cima até os 800 metros, finalmente alcançamos o bambuzal à margem do Rio Cipó. Nesse ponto, os planos seriam cruzar o rio e tomar um trecho de estrada de terra interna ao Parque, para então emendarmos a trilha em direção à Cachoeira Capão dos Palmitos. Olhando o mapa, entretanto, verificamos o traçado (obtido no OpenStreetMaps) de uma trilha que poderia ser um corte de caminho que evitaria o trecho de estrada. Decidimos fazer uma exploração no local. O acesso até a tal trilha, porém, exigia atravessar mais uma área sem trilhas. Trata-se de uma região de baixada, contendo meandros e pequenos córregos. Gastamos muito tempo tentando atravessar uma drenagem. Cerca de 40 minutos depois estávamos de volta ao bambuzal, e aos planos originais.
Próximo ao bambuzal, o Rio Cipó é mais largo e mais raso. Conseguimos cruzá-lo sem as botas, com água nas canelas. Acessamos a estrada interna, passamos pela Portaria Retiro, pelo Ponto de Controle do Parque e, 600 metros à frente, nos deparamos com a segunda travessia do Rio Cipó, a qual havia nos preocupado durante os planejamentos. Nesse ponto o Rio parecia ser mais profundo, e algumas imagens de satélite sugeriam a presença de um pequena ponte. Chegando ao local, detectamos apenas os fragmentos do que pareciam ser os pilares da antiga ponte. Descalçamos novamente as botas, e felizmente, conseguimos realizar a travessia com água um palmo abaixo da cintura. Apesar da profundidade maior, a correnteza era fraca, e não tivemos problemas para manter o equilíbrio com a ajuda dos bastões de caminhada. Certamente seria um local problemático num período de cheia.
Seguimos a trilha em direção à Portaria Areias. Passamos por alguns campos abertos, deixamos para trás a entrada para o Cânion das Bandeirinhas e tomamos a trilha para o Capão dos Palmitos. Essa parte final talvez tenha sido a mais desgastante do dia. Já havíamos percorrido 12 quilômetros, o Sol resolveu aparecer e precisávamos ganhar 170 metros de elevação numa trilha totalmente desabrigada. Ao final da subida, alcançamos a bifurcação entre a trilha que segue para a Lagoa Dourada e a descida para a Cachoeira Capão dos Palmitos. Descemos pelos 1,3 Km até o topo da Capão do Palmitos, já preocupados com nosso ponto de pernoite. Além de exposta ao Sol, a região era de capim alto, denso e solo cheio de pedras. No topo da cachoeira, avistamos o poço no base e uma pequena área que poderia servir de acampamento. Após uma descida exploratória, decidimos que lá em baixo seria nossa melhor aposta.
Descemos com as cargueiras e montamos as barracas sobre as raízes de árvores e pedras, nos únicos espaços grandes o suficiente para acomodá-las. Estávamos protegidos do vento, mas em termos de conforto do terreno, definitivamente foi nossa pior noite. Apesar do desapontamento com as condições para o pernoite, o local era muito bonito, o poço da cachoeira muito bom e a queda d'água, não tão majestosa quanto as anteriores, mas também muito bonita. Nadamos no poço e mais tarde, durante o jantar, percebemos que estávamos numa espécie de metrópole das formigas. Quantidades enormes delas saíam de suas tocas, formando trilhas em diferentes direções. Eram formigas de tamanhos diferentes e em alguns momentos pareciam disputar entre si pelo território. De qualquer forma, não nos incomodaram, nem nós as incomodamos. Seguiram suas vidas transportando suas folhas enquanto nós desviávamos das suas rotas. Havíamos pegado 30°C na subida final da trilha. Ao anoitecer, faziam 20°C, e as nuvens voltavam a encobrir o céu.
25/05) Cachoeira Capão dos Palmitos → Vale da Lagoa Dourada
Foto: Catia Valdman
Iniciamos o dia voltando a trilha de descida para o Capão dos Palmitos, e retomando a trilha em direção à Lagoa Dourada. Tão logo seguimos, percebemos que trilha ficou mais fechada e confusa. O trecho até o Capão definitivamente recebe muito mais visitação do que a continuação até a Lagoa Dourada. Com 7 Km de percurso, chegamos ao pé da montanha que nos separava do vale da Lagoa Dourada. Nos próximos 2 Km, ganhamos 300 metros de elevação até o topo da montanha. O céu havia aberto e a trilha totalmente desabrigada do Sol cobrou seu preço. Na meio da subida identificamos a gruta sinalizada na carta topográfica. Ela ficava próxima à trilha, mas num parte rebaixada do terreno, sem nenhum acesso óbvio. Preferimos continuar focados em vencer a subida e não fizemos a exploração da gruta.
Tão logo começamos a descer do outro lado da montanha, começamos a vislumbrar o vale da Lagoa Dourada. A paisagem era realmente muito bonita. O céu estava encoberto novamente, mas nos breves momentos que havia iluminação direta, o Sol fazia o extenso capinzal brilhar, o que certamente levou à denominação daquele vale. Descemos 100 metros de altitude, e começamos a nos aproximar da área da Cachoeira Lagoa Dourada. Encontramos as ruínas de um pequeno abrigo e ficamos estarrecidos com a sujeira no entorno. Aparentemente alguns frequentadores da área não tem nenhuma educação. Todo tipo de latas e embalagens abandonadas pelo gramado. Uma verdadeira tristeza ver um local com belezas naturais diferenciadas sendo tratado como um lixão.
Foto: Catia Valdman
Logo ao lado, chegamos no mirante da Cachoeira da Lagoa Dourada. As águas do Rio Jaboticatubas despencam do paredão rochoso, formando um cânion estreito que se estende diante dos nossos olhos. Um visual maravilhoso, impossível de capturar com as lentes das câmeras. Sentamos ali na beira do penhasco e ficamos admirando aquele visual durante alguns minutos. Depois, seguimos a trilha por mais alguns metros, e visitamos o ponto exato da queda d'água. Seguimos viagem extasiados com o visual da cachoeira e com a beleza do vale que íamos atravessando. Nosso destino nesse dia era um afluente do Jaboticatubas, localizado na porção mais ao sul do vale. Não sabíamos exatamente que tipo de terreno encontraríamos por lá, nem as condições do tal afluente. As pequenas drenagem que cruzávamos, sempre com algum filete d'água corrente, indicavam que ao menos alguma água para beber encontraríamos mais cedo ou mais tarde.
Foto: Patrícia Carvalho
Cuidadosamente cruzamos um grande lamaçal, e verificamos que duas centenas de metros à frente estaria o ponto planejado para o nosso quarto e último pernoite. Diferentemente do observado na maior parte do vale, identificamos ali a presença de algumas árvores agrupadas, e um terreno relativamente plano, o que seria excelente para o nosso acampamento. Logo atrás, cruzava transversalmente uma vala extensa de areia branca, que possivelmente seria o leito do afluente que buscávamos. Do outro lado da vala, um rebanho de bovinos muito curiosos acompanhava nossa aproximação. Descemos o banco de areia ansiosos e confirmamos a água corrente! O tímido córrego passava na altura das nossas canelas. Isso não seria um problema para a captação de água para beber e cozinhar. Entretanto, o banho do dia não seria tão luxuoso quanto nos anteriores.
Após a última noite dormindo sobre as pedras e raízes no Capão dos Palmitos, estávamos felizes de montar nossas barracas num gramado sem tantas pedras e razoavelmente nivelado. Porém, nos lembramos dos acampamentos da excursão do ano anterior, quando precisávamos negociar algum espaço em meio ao esterco de vaca para montar a barraca. Vencida a etapa da montagem das barracas, fomos explorar o afluente. Descobrimos que seguindo o curso d'água em direção ao Jaboticatubas, se formava uma simpática praia onde era possível tomar algum sol, quando esse despontava atrás das nuvens. Mais à frente, no encontro dos rios, um pequeno remanso com um metro de profundidade permitiu até um banho de corpo todo.
Foto: Catia Valdman
Ao anoitecer, como de costume, o vento voltou, despencando a sensação térmica e dificultando nosso jantar. Ao longe, se ouvia o piado de uma coruja. Estávamos no meio do vale e, apesar da silhueta das montanhas no horizonte, tínhamos um maravilhoso domo estrelado para contemplar. Acompanhamos o Escorpião se erguer ao leste e nos encantamos com a Ursa Maior ao norte, em oposição ao familiar Cruzeiro do Sul. Com as barracas bem fixadas para evitar problemas com o vento durante madrugada, nos recolhemos. Ao contrário do ano anterior, os carrapatos ainda não tinham sido problemas na presente excursão. Porém, a tarde no pasto deixou, literalmente, suas marcas. Tive dificuldades para pegar no sono, me coçando com as mordidas dos indesejáveis carrapatos, cuja presença foi confirmada também por um dos amigos que teve o desprazer de remover um espécime do seu próprio corpo.
25/05) Vale da Lagoa Dourada → Altamira de Baixo
A noite fora agitada, com os carrapatos, o barulho do vento e ainda com o vazamento de um camelback dentro de uma barraca. Apesar disso, mantivemos nosso plano de levantar às 5, uma hora antes do padrão, para ganharmos mais tempo de caminhada. Nosso último dia teria uma quilometragem maior, e tínhamos horário a cumprir com a van para retorno à Belo Horizonte. A coruja piava novamente na mata. Fizemos nossas atividades matinais ainda no escuro, enquanto o Sol vagarosamente começava a iluminar o céu atrás das montanhas do vale. Faziam 12°C pela manhã, e o vento continuava. A maioria optou por iniciar a caminhada ainda com os seus anoraks.
Continuamos a travessia do vale, que ia se estreitando cada vez mais conforme avançávamos. Avistamos uma cachoeira caindo da montanha à nossa esquerda, e mais tarde, outra à nossa frente, no paredão ao final do vale. Nos aproximamos do curso do Jaboticatubas, e realizamos o seu cruzamento num ponto onde seu leito ficara bem bonito, com pedras grandes e brancas. Teria sido um outro ponto interessante para pernoite, apesar de não ter a proteção das árvores existentes no último ponto que usamos. Da mesma forma que precisamos vencer uma montanha para mergulhar dentro do vale da Lagoa Dourada, agora precisávamos subir outra para emergir. Saímos dos 1.200 metros de altitude do fundo do vale para um lindo mirante em 1.400 metros. De lá, era possível observar grande parte da extensão que percorremos dentro do vale, até o cânion da Cachoeira Lagoa Dourada.
Continuamos ganhando altitude até os 1.600 metros. Dali, iniciamos uma série de sobes e desces relativamente suaves, cruzando um mar de montanhas em direção à Altamira. As paisagens continuam muito bonitas nesse trecho, apesar de um pouco ofuscadas pelo visual da Lagoa Dourada. Alcançamos o topo da Cachoeira Alta, onde, apesar de não ser possível admirar a queda d'água de frente, encontramos belos poços de água cristalina, e um visual incrível de Altamira de Cima. Seguimos viagem por ainda mais 8 Km, até chegarmos no Cruzeiro de Altamira. Deixamos as cargueiras na bifurcação, e fizemos a trilha curta até o ponto onde o cruzeiro está instalado. O lugar oferece uma vista interessante sobre o pequeno povoado.
Retornamos para trilha principal, fizemos uma descida forte de 150 metros até a estradinha de terra em meio às plantações de banana. Seguimos por 400 metros até tomar uma trilha de corte de caminho que nos deixou já nas ruas da cidade. Percorremos mais 200 metros até o bar da Tânia, onde recuperamos nossas roupas limpas para a viagem de volta pra casa. Na outra ponta da rua, tiramos nossa foto celebrativa em frente à Igreja Matriz de Altamira. Eram 14:00, exatamente o horário planejado para nossa chegada. Valeu a pena acordarmos uma hora antes. A Pousada Mutuca fica ao lado da igreja. Pagamos para tomar um banho na pousada e às 15 horas, seguimos para o almoço no bar da Tânia. Comida caseira muito boa!
Às 16:30 embarcamos na van de volta para a rodoviária de Belo Horizonte. Às 19:15, chegávamos na rodoviária. A viagem de retorno foi um pouco mais longa, devido a um congestionamento na estrada. Ainda assim, tínhamos tempo de sobra antes do nosso embarque. Repetimos o ritual da última viagem ao Espinhaço. Deixamos nossa bagagem no guarda-volumes e pegamos um Uber para um jantar comemorativo no Savassi. O restaurante da última vez (Gennaro) estava cheio, então experimentamos o seu vizinho, o Almanaque. Comida muito boa, mas um ambiente mais barulhento. Retornamos para rodoviária sem problemas, recuperamos nossa bagagem e embarcamos às 23:00 para retorno ao Rio. Viagem tranquila, sem paradas, como na vinda. Antes das 6:00 estávamos na rodoviária do Rio.
Dados e downloads
Na tabela abaixo estão resumidos os dados do tracklog gravado na travessia. Segue o link para download do tracklog: LongoCursoComBr-AltamiraCipóAltamira2023.gpx. E aqui o link para download da carta topográfica utilizada durante o percurso.
Data | Detalhe | Distância | Tempo | D.M. | G.E.A | P.E.A |
---|---|---|---|---|---|---|
22/05 | Altamira de Cima x Cachoeira Braúnas | 10,51 Km | 5:14 | 1185 m - 1457 m | 402 m | 528 m |
23/05 | Cachoeira Braúnas x Cachoeira Farofa de Cima | 10,38 Km | 6:26 | 1139 m - 1397 m | 594 m | 554 m |
24/05 | Farofa de Cima x Cachoeira Capão do Palmitos (1) | 14,04 Km | 7:19 | 797 m - 1235 m | 371 m | 700 m |
24/05 | Ataque ao poço Cachoeira Farofa de Cima (2) | 0,99 Km | 0:49 | 1164 m - 1194 m | 66 m | 66 m |
24/05 | Exploração entorno Rio Cipó (2) | 0,93 Km | 0:34 | 799 m - 810 m | 37 m | 37 m |
25/05 | Capão dos Palmitos x Vale da Lagoa Dourada | 14,52 Km | 5:41 | 902 m - 1292 m | 681 m | 375 m |
26/05 | Vale da Lagoa Dourada x Altamira de Baixo (3) | 15,35 Km | 6:52 | 1042 m - 1465 m | 756 m | 920 m |
26/05 | Ataque ao Cruzeiro de Altamira (2) | 1,43 km | 0:32 | 1238 m - 1262 m | 65 m | 65 m |
TOTAL | 68,15 Km | 33:27 | 797 m - 1465 m | 2972 m | 3245 m |
Publicado em: 05/06/2023