Visão geral
A Travessia do Rancho Caído é uma das 3 travessias clássicas do Parque Nacional de Itatiaia. Já tinha tido a oportunidade de percorrer a Travessia da Serra Negra e a Ruy Braga em temporadas anteriores, e em julho de 2023, chegou finalmente a vez de conhecer a famosa Rancho Caído. Ela é realizada normalmente em dois dias, iniciando-se na parte alta do Parque Nacional e terminando na vila de Maromba, bem ao lado da Cachoeira do Escorrega. Ainda na parte alta do Parque, existem algumas alternativas de trajeto para se iniciar a travessia, sendo talvez a mais comum começar bem próximo à portaria (local conhecido como Posto Marcão), percorrer boa parte do Circuito dos Cinco Lagos e tomar a bifurcação para a Cachoeira do Aiuruoca, nas proximidades da Asa de Hermes. Esse foi o roteiro que utilizamos.
Com base nessa rota, a travessia totaliza 18,5 Km, sendo 11 Km vencidos no primeiro dia, e 7,5 Km no segundo dia, com um pernoite na área conhecida como Rancho Caído, que dá nome à travessia. O primeiro dia é sem dúvida o mais exigente fisicamente, com 600 metros de aclive acumulado e 730 de declive. O segundo dia consiste basicamente numa longa descida até Maromba, com apenas 170 metros de aclive e mais de 1100 metros de declive acumulado. Além desse trajeto base, pode ser opcionalmente acrescida ao percurso a visita à Cachoeira do Aiuruoca, a visita aos Ovos da Galinha e à Pedra do Sino de Itatiaia. A Cachoeira do Aiuruoca é muito bonita e tem acesso bem simples a partir da trilha principal da travessia, tornado-se dessa forma, uma parada praticamente obrigatória. Já os Ovos da Galinha e a Pedra do Sino acrescentam 2,6 Km de distância a ser percorrida (ida e volta), além de mais 300 metros de ganho de elevação.
Existem diversas oportunidades de abastecimento de água durante o percurso, inclusive, bons pontos de abastecimento na área de acampamento. O primeiro dia da caminhada é certamente o mais interessante, pois permite o avistamento de várias formações relevantes da parte alta do Parque, incluindo o Pico das Agulhas Negras, a Pedra do Altar, a Asa de Hermes, além da própria Cachoeira do Aiuruoca, a Pedra do Sino e os Ovos da Galinha. O segundo dia também conta com um belo visual na parte inicial, mas depois o restante da caminhada é feito dentro da mata fechada, sem muitos atrativos. Achei a travessia mais interessante do que a Ruy Braga, e bem similar à Serra Negra em termos de pontos de interesse. Até porque, a Serra Negra também se inicia e termina nas mesmas regiões da Rancho Caído, porém realizando um traçado diferente na parte central do percurso.
Normas de visitação
A Travessia do Rancho Caído é bastante popular e por isso existem algumas regras de visitação que precisam ser respeitadas. Como a gestão do Parque atualiza essas normas de tempos em tempos, é importante buscar as informações mais atualizadas para realizar o planejamento apropriado da atividade. Infelizmente, as informações ficam dispersas em dois sites diferentes, o institucional do ICMBio, e outro com perfil mais turístico/comercial, que parece ser mantido pela atual concessionária do Parque. Fora essa questão de organização dos sites, minhas tentativas de contato por telefone e por e-mail para tirar dúvidas também foram frustradas. Apesar disso, com paciência é possível localizar boa parte das informações relevantes para o planejamento nos sites.
Nossos ingressos foram comprados com 1 mês de antecedência, ao custo de R$ 60,00 por pessoa, através do site comercial que mencionei. O Parque exige que a travessia seja iniciada até as 10 horas da manhã, e está liberada a realização em ambos os sentidos (subindo de Maromba ou descendo a partir da parte alta, conforme fizemos). O único ponto de pernoite permitido é o Rancho Caído, e é obrigatório que cada membro do grupo esteja com seu kit coletor de dejetos ("shit tube"). Existe o limite de 26 visitantes acampando por noite no Rancho Caído.
Logística
Nossa ideia inicial seria partir do Rio de Janeiro na sexta-feira à noite e pernoitar em uma pousada em Maromba. Assim, curtiríamos um pouco do vilarejo à noite, e já estaríamos próximos do local travessia no dia seguinte. Pela manhã, deixaríamos os carros num estacionamento próximo à Cachoeira do Escorrega e contrataríamos algum translado para nos levar até a parte alta do Parque Nacional, onde começaríamos a caminhada. No dia seguinte, terminaríamos a caminhada de volta em Maromba, onde os carros estariam nos esperando para retornar ao Rio. Uma estratégia bastante intuitiva. Inclusive, muito semelhante ao que fizemos na Travessia Ruy Braga em 2018. Porém, esta acabou não se mostrando a opção mais interessante, por alguns motivos.
Foto: Marcelo Hubner
Primeiramente, porque se revelou uma tarefa difícil conseguir algum translado de Maromba até a parte alta do Parque. Parece que o principal motivo para isso seriam as péssimas condições da estrada entre a Garganta do Registro e a portaria da parte alta. De fato, constatamos que a estrada estava péssima. Quando começamos o percurso, as condições não estavam muito diferentes do que eu me recordava: Uma estrada não pavimentada um pouco irregular, mas transitável sem maiores preocupações. No entanto, a medida que avançamos, crateras e pedras maiores foram aparecendo. O grupo tinha um SUV e um Fox. Acabamos levando 1 hora e 20 minutos para realizar o percurso de pouco mais de 13 Km. Uma situação no mínimo entristecedora, se pensarmos que este é o principal acesso para os principais atrativos do primeiro Parque Nacional do Brasil.
Fora a dificuldade com a contratação do translado, outro ponto contrário a estratégia inicial foi o tempo de percurso de Maromba até a portaria. Só para sair de Maromba e chegar na Via Dutra, na altura de Itatiaia, leva-se cerca de 1 hora e meia. Dali até a garganta do registro, mais 40 minutos. E depois mais aquela 1 hora e 20 minutos até a portaria na estrada destruída. Seria um total de 3,5 horas de estrada até o ponto de início da trilha. Então, se havia a expectativa de dormir até um pouco mais tarde antes da caminhada, o pernoite em Maromba não seria a solução para isso. Por fim, sabemos que a saída do Rio de Janeiro na sexta-feira à noite é sempre muito engarrafada. Acabaríamos nos desgastando na estrada e chegando tarde em Maromba, inviabilizando a ideia de curtir qualquer coisa na vila ainda na sexta.
Acabamos optando por uma estratégia bem mais objetiva e também mais econômica: Contratamos o Sérgio (35 9708-0850) e seu sobrinho Caio para levar nossos carros da parte alta até Maromba. Custo de R$ 300 por carro. Não acho nada confortável entregar a chave do carro a um desconhecido para realizar esse serviço, mas é uma alternativa bastante utilizada pelos visitantes do Parque. O Sérgio, inclusive, foi recomendado por outro amigo que já tinha feito uma contratação semelhante anteriormente. Com isso, partimos direto do Rio para o Parque no sábado de madrugada. Saímos do Rio às 4:30. Chegamos na Garganta do Registro às 7:20. Alcançamos a portaria às 8:40. Chegando lá, entregamos nossos carros ao Caio e partimos para a caminhada. Quando chegamos em Maromba, os carros estavam nos aguardando no estacionamento, bem perto da Cachoeira do Escorrega. Acertamos a diária do estacionamento (R$ 20 por carro por dia) e retornamos pro Rio no próprio domingo. A volta foi tranquila, sem congestionamentos.
Clima
Tivemos um final de semana de tempo excelente para a caminhada. Sem chuva, céu totalmente aberto, ótima visibilidade, com temperaturas oscilando entre 22°C e 24°C durante o dia. Apesar disso, naturalmente, pegamos bastante frio durante a noite. A Serra da Mantiqueira é famosa por suas baixíssimas temperaturas durante o inverno. Quando começamos nossa caminhada às 9:30 no Posto Marcão, encontramos a grama ainda coberta por cristais de gelo, nas áreas que ainda não estavam sendo iluminadas pelo sol.
Chegamos no Rancho Caído às 16:40 e imediatamente começamos a montagem das barracas. Não demorou para o sol cair atrás das montanhas e rapidamente as temperaturas despencarem. Assim que terminei a montagem da barraca, os dedos das mãos estavam dormentes do frio e precisei me agasalhar. No início da noite, uma névoa densa era notada no nosso entorno. Precisei me deslocar com cuidado na trilha quando fui "ao banheiro". A luz da lanterna refletia na névoa ofuscando a visão. Era necessário apontar o feixe de luz para o chão, e se guiar apenas com poucos metros de trilha visíveis à frente. Ao cruzar os lajeados, era necessária atenção redobrada para não perder o rumo.
Às 19:40, quando a maioria do grupo já havia se recolhido, o termômetro marcava 2°C, e a temperatura continuava a cair. Uns mais corajosos resistiram mais tempo lá fora, fotografando as estrelas. De forma conservadora, acreditamos que durante a madrugada tivemos temperaturas de -2°C. Poderíamos dizer que certamente ficou entre 0°C e -5°C. Perto do amanhecer, percebemos vento do lado de fora das barracas, mas não chegou a ser uma preocupação. Acordamos antes das 7, e com dificuldade, fomos iniciando as atividades matinais. O sol iluminou nossas barracas às 7:40 quando então ficou muito mais agradável para realizarmos as tarefas, inclusive a secagem dos sobretetos das barracas que, a essa altura, estavam enxarcados pela condensação durante a madrugada congelante.
Acampamento
A área de acampamento no Rancho Caído é relativamente ampla, porém o terreno é irregular, pedregoso e com bastante vegetação. Quando chegamos, avaliamos duas opções de local para a montagem das nossas 3 barracas. O primeiro era uma espécie de clareira no meio do capim alto, visivelmente utilizada com regularidade pelos montanhistas para acampamento. Acabamos optando pela segunda alternativa, uma área mais descampada, onde conseguiríamos colocar as 3 barracas próximas uma das outras. Apesar de pouco mais espaçosa, ainda assim foi necessário solucionar um certo quebra-cabeças para conseguir posicionar as 3 de forma razoável no local. Contudo, ainda não conseguimos ter todas as portas livres, e alguns dos cordeletes precisaram ser amarrados com pedras, já que era impossível fixar os espeques no solo raso e cheio de pedras. Quase sem vento, o terreno descampado se mostrou uma ótima opção, pois fomos os primeiros a receber os raios de sol na manhã gelada. Os grupos que optaram por ficar entocados nas ilhas de matagal certamente sofreram com o frio por mais tempo.
Água não foi um problema no acampamento. Cerca de 100 metros antes de chegarmos no local, cruzamos um pequeno córrego. Cerca de 50 metros à frente do local onde montamos nossas barracas, havia outro bom ponto para coleta de água. O fluxo era bem razoável, certamente são córregos perenes, até porque nessa época seca do ano ainda fluíam com abundância. Entretanto, são córregos bem rasos e cheios de pedras, inviabilizando qualquer tentativa de banho, isso se o frio na região não fosse por si só, motivo suficiente para desencorajar um mergulho. Felizmente, não localizamos sujeira próxima aos pontos de água, e de forma geral toda a área do acampamento estava razoavelmente limpa.
Sou grande fã das caminhadas em que permanecemos imersos na natureza por dias sem encontrar com outras pessoas. Essa sensação de isolamento e privacidade é especialmente bem-vinda nos pontos de acampamento. Tive o privilégio de experimentar esses momentos diversas vezes caminhando no nosso Cerrado e nos parques norte americanos. Quem procura por esse tipo de experiência, é bom estar avisado de que não encontrará isso no Rancho Caído. Apesar do controle de quantidade de visitantes, sendo a única área permitida para acampamento, o Rancho Caído acaba ficando super populado. Fazia bastante tempo que eu não fazia um acampamento nesse estilo, e não tenho saudades. De toda forma, reconheço que essa não foi das piores experiências. Até que nossos vizinhos eram educados. Com exceção do dono do drone, a nova praga das montanhas, que insistia em sobrevoar a área a cabeça dos colegas com seu brinquedo egoísta, a despeito da proibição segunda as normas de visitação do Parque.
Tinha a expectativa de encontrar por lá o lobo-guará, que segundo relatos, vinha fazendo visitas à área de acampamento. Infelizmente, ainda não foi dessa vez que tive o privilégio de ver de perto esse belo animal. Mas tivemos outra experiência interessante. Nas primeiras horas da manhã de domingo acordei com barulhos suspeitos vindos do lado de fora da barraca. Me lembrei que havia deixado do lado de fora um saco plástico com meu shit tube, e certamente isso teria aguçado a curiosidade de algum animal. Abri a porta da barraca na esperança de ver o lobo bem ali do lado, mas dei de cara com um casal de carcarás, a poucos metros de distância. Eles tentavam violar a embalagem com suas garras e bicos afiados. Para a sorte deles, e minha, rasgaram apenas o saco plástico externo. Tentei pegar o celular para registrar a cena, mas os animais voaram antes.
Nas próximas horas, observamos que o casal estava totalmente familiarizado com o local e com a presença das pessoas. E conforme constatei, lamentavelmente já estavam condicionados a buscar alimentos em sacos plásticos. Fica o alerta para os próximos que acamparem no local. Não só para evitar perderem comida, como também para evitar prejuízos aos próprios animais. Conseguimos contemplar bastante os dois, que voavam de um lado para o outro e pegavam sol sobre uma grande pedra próxima das barracas. Não se incomodavam com nossa aproximação e deixaram ser fotografados por vários ângulos, bem de perto.
Resumo
Abaixo seguem alguns dados sobre a nossa caminhada. Disponibilizo para download também o tracklog que gravei.
Sábado 22/07/2023
- 04:30 - Saída do Rio de Janeiro
- 07:20 - Chegada na Garganta do Registro
- 08:40 - Chegada na portaria (Posto Marcão)
- 09:30 - Início da caminhada
- 13:30 - Chegada na Cachoeira do Aiuruoca
- 14:20 - Chegada na bifurcação para os Ovos da Galinha e Pedra do Sino. Achamos que o grupo estava lento e preferimos seguir viagem direto para o Rancho Caído, sem fazer a visitação aos cumes adicionais.
- 16:40 - Chegada no Rancho Caído
Domingo 23/07/2023
- 09:40 - Início da caminhada
- 16:25 - Término na Cachoeira do Escorrega. Um dos integrantes do grupo teve problemas com bolhas nos pés, o que reduziu consideravelmente a velocidade no segundo dia. Além disso, gastamos 40 minutos na operação de recuperação do meu celular, que deixei cair durante a descida para Maromba e precisei retornar a trilha até encontrá-lo.
Publicado em: 13/08/2023