Grand Canyon 2023
Arizona, EUA
5 dias - out/2023

Um pouco sobre o Parque

Considerado um patrimônio da humanidade pela UNESCO e, possivelmente, uma dos mais famosas formações naturais dos Estados Unidos, o Grand Canyon se estende por 446 Km, chega a 29 Km de largura e quase 1,9 Km de profundidade. Não é o mais extenso, nem o mais largo ou profundo do mundo, mas é considerado um dos mais grandiosos, pela sua beleza e imponência. O cânion atravessa quatro estados norte-americanos e seis unidades de conservação, sendo o Grand Canyon National Park, no Arizona, a mais popular e mais acessível. O parque é um dos mais visitados daquele país, tendo recebido 4,7 milhões de pessoas em 2022. Nos anos pré-pandemia, chegou a ultrapassar a marca de 6 milhões de visitantes. Além da beleza natural ímpar, o cânion desperta interesse por sua geologia. Ele foi esculpido pelo Rio Colorado, num trabalho iniciado entre 5 e 6 milhões de anos atrás, e ainda hoje em andamento. Já as rochas expostas no fundo do cânion, chegam a 2 bilhões de anos de idade.

Rio Colorado avistado a partir da lateral do Cardenas Butte, no primeiro dia na Escalante Route
Rio Colorado avistado a partir da lateral do Cardenas Butte, no primeiro dia na Escalante Route
Foto: Catia Valdman

Com 493 mil hectares, o parque é o quarto maior dos Estados Unidos contíguos. Em sua área, abriga 957 Km de trilhas, possibilitando a exploração, tanto da borda do cânion, quanto do seu interior. A possibilidade de imersão no universo do Grand Canyon, através da exploração das suas trilhas, é tentadora para o montanhista. Entretanto, as grandes variações de elevação a serem vencidas, e o clima árido da região trazem desafios. A baixa umidade do ar favorece a grandes amplitudes térmicas ao longo do dia. E a grande diferença de altitude, por si só, leva a cerca de 10°C de variação de temperatura entre fundo e a borda do cânion. No auge do verão, a temperatura média no interior do cânion é de 41°C, podendo atingir a máxima de 49°C. No auge do inverno, a temperatura média na borda do cânion é de -8°C, com registros recordes de -22°C. Assim, a boa preparação física e escolha da janela climática mais favorável é fator crucial para a o sucesso das caminhadas.

Planejamento

Desde as nossas primeiras visitas aos EUA, começamos a sonhar com uma travessia no Grand Canyon. Tendo já utilizado algumas vezes a cidade de Las Vegas como base para nossas excursões, não teria sido difícil encaixar uma visita ao Grand Canyon em um dos nossos roteiros. Porém, queríamos mais do que contemplar a imensidão do cânion a partir dos seus mirantes. Queríamos mergulhar fundo naquele universo, realizando alguma travessia dentro do cânion. Para isso, precisávamos ser agraciados no concorrido sorteio de backcountry permits. Com taxa de sucesso na casa de 25% para a temporada adequada, conseguir o permit para o Grand Canyon é tarefa tão difícil quanto conseguir um permit para a subida do Half Dome, no Yosemite. Em 2016, já havíamos tentado, sem sucesso, obter um permit para a travessia de uma borda para a outra (acabamos indo para o Zion). Mas não desistimos do Grand Canyon.

Rio Colorado visto do final da Dox Traverse, no segundo dia na Escalante Route
Rio Colorado visto do final da Dox Traverse, no segundo dia na Escalante Route
Foto: Patrícia Carvalho

Em 2023, decidimos fazer mais uma tentativa. Nos inscreveríamos para duas travessias em datas diferentes, e ampliaríamos os itinerários de nosso interesse. Ao invés de focar apenas na concorridíssima travessia de uma borda para a outra (rim-to-rim), incluímos como alternativas a Hermit Rest to Bright Angel, a Grand View to South Kaibab e a Escalante Route. Esses outros itinerários, apesar de menos populares, pareciam ser também excelentes formas de conhecer o parque. Inclusive, por serem menos frequentados e mais desafiadores, talvez pudessem ser até mais interessantes do que a rim-to-rim. Nas pesquisas que fizemos, vimos que a Escalante Route, por exemplo, era citada como a mais bonita do parque e, devido aos seus "trepa-pedras" e trechos de difícil orientação, também conhecida como uma das mais desafiadoras. Nos inscrever para uma travessia com essa fama, na nossa primeira vez no Grand Canyon, gerava certa apreensão. Mas confiamos na nossa experiência e, no final de maio, enviamos nosso fax com os formulários de inscrição.

Deixando para trás a praia na boca do 75 Mile Canyon, no segundo dia na Escalante Route
Deixando para trás a praia na boca do 75 Mile Canyon, no segundo dia na Escalante Route
Foto: Patrícia Carvalho

Para o envio do inconveniente fax, contamos mais uma vez com o site HelloFax (o serviço parece ter sido incorporado agora pelo Dropbox e vai se chamar Dropbox Fax). Feita nossa inscrição, precisaríamos aguardar longas semanas até a divulgação dos resultados. Antes mesmo da inscrição, já havíamos feito a reserva de um campsite na parte estruturada do parque. Não queríamos correr o risco de conseguir algum permit e ter nossa logística comprometida por indisponibilidade no Mather Campground.

(Uma curiosidade sobre o processo de inscrição para o sorteio, é que, finalmente, a partir de 2024, o Parque irá adotar a plataforma Recreation.gov para substituir os faxes. Além de mais prático, parece que o novo processo será até mais conveniente, pois os contemplados poderão escolher os itinerários disponíveis depois de terem sido sorteados. Atualmente, os faxes precisam ser enviados indicando previamente os itinerários desejados.)

Lagarto na boca do Hance Canyon. Terceiro dia na Escalante Route.
Lagarto na boca do Hance Canyon. Terceiro dia na Escalante Route.
Foto: Catia Valdman

No início de junho recebemos um e-mail do Parque nos informando que existia vaga disponível para realizarmos a Escalante Route nas datas que solicitamos. Porém, para a emissão do permit, precisavam confirmar se nós estávamos seguros do que realmente iríamos fazer. Nas palavras do Parque: "The itinerary you proposed is difficult for even the most experienced Grand Canyon backpacker. If you are highly experienced at Grand Canyon and determined to keep this particular itinerary, a permit can be issued to you.".

Em anexo ao e-mail, um documento informativo com uma listagem de riscos envolvidos em uma excursão como aquela, e um formulário onde deveríamos descrever a experiência do grupo em regiões de deserto, além de relacionar o equipamento que estaríamos levando. Foi a primeira vez que vi esse tipo de exigência para obtenção de um backcountry permit. Respondemos ao e-mail confirmando nosso interesse, e enviamos os dados solicitados. Quatro dias depois, recebemos novo e-mail com o esperado permit para a Escalante Route. Em destaque, no topo do documento, a mensagem intimidadora: "AGGRESSIVE ITINERARY! HIKER INSISTED ON ITINERARY."

Com a confirmação de pelo menos uma das travessias que solicitamos, tivemos sinal verde para continuar com a organização da viagem: Estávamos indo para o Grand Canyon! No meio de junho, recebemos outro e-mail do Parque, com o resultado da inscrição para as outras travessias. Conforme imaginávamos, permits negados. Afinal, essa segunda inscrição envolvia justamente os roteiros que usam o "corredor principal do cânion": a rim-to-rim, e a Hermit Rest to Bright Angel. De qualquer forma, estávamos animados com o permit que conseguimos, e já esperávamos precisar adaptar o roteiro da viagem, a medida que esses resultados saíssem. Ao longo dos próximos meses, continuamos os estudos e pesquisas. Além do Grand Canyon, iríamos aproveitar a visita aos EUA para conhecer outros parques no sul do Utah. O roteiro que acabamos executando na viagem foi o seguinte:

DataLocalAtividadePernoite
29/09Voo idaVoo Rio → Las VegasVoo
30/09Las VegasCompras e preparativosLas Vegas
01/10EstradaLas Vegas → Grand CanyonMather Campground
02/10Grand CanyonDia #1 Escalante Route (Lipan Point → Cardenas Beach)Cardenas Beach
03/10Grand CanyonDia #2 Escalante Route (Cardenas Beach → Papago Beach)Papago Beach
04/10Grand CanyonDia #3 Escalante Route (Papago Beach → Hance Spring)Hance Spring
05/10Grand CanyonDia #4 Escalante Route (Hance Spring → Grand View Point)Mather Campground
06/10Grand CanyonHermit Road, Yavapai Museum, Desert View PointMather Campground
07/10EstradaTuba City Dinosaur Tracks, Monument Valley, Mexican HatValley of the Gods
08/10EstradaValley of the Gods, Natural Bridges National MonumentFruita Campground
09/10Capitol ReefDia #1 Circuito (Cohab Canyon, Frying Pan, Cassidy Arch, Grand Wash)Fremont River
10/10Capitol ReefDia #2 Circuito (Lower Spring Canyon Trail)Chimney Rock Trailhead
11/10Capitol ReefDia #3 Circuito (Sulphur Creek Trail)Fruita Campground
12/10Bryce CanyonNavajo Trail & Peekaboo LoopNorth Campground
13/10EstradaBryce Canyon → Pahrump (via Byway 12)Pahrump
14/10Red Rock CanyonScenic Loop, Calico Tanks Trail, Ice Box Canyon TrailPahrump
15/10Red Rock CanyonVisitor Center & EclipseLas Vegas
16/10Las VegasCompras, Fremont Street, StripLas Vegas
17/10Voo retornoVoo Las Vegas → RioVoo

Até chegamos nessa versão final, alguns ajustes se fizeram necessários. Inicialmente, pretendíamos fazer uma travessia no Canyonlands National Park. Porém não conseguimos vagas no acampamento, e preferimos adiar essa visita para outra oportunidade. Pretendíamos também visitar o Death Valley, que acabou sendo fechado depois dos estragos causados por uma enchente em agosto, reflexo do Furacão Hilary. Outra alteração, foi a redução em um dia nossa estadia no Grand Canyon. O objetivo foi possibilitar a viagem de carro até o Capitol Reef em dois dias, com um pernoite no Valley of the Gods, e com mais tempo para conhecermos os atrativos ao longo da estrada. Dentre esses atrativos, estaria o Goosenecks State Park, que acabou mesmo assim não sendo visitado por falta de tempo. O mesmo aconteceu com a Lower Calf Creek Falls, e a Escalante Natural Bridge, deixados para trás por conta do cronograma. A região é riquíssima em atrativos. Tivéssemos o dobro de tempo, ainda sobrariam inúmeros pontos de interesse a serem explorados.

Visual do Grand Canyon a partir do Desert View Point. Final de tarde na véspera da nossa partida do parque.
Visual do Grand Canyon a partir do Desert View Point. Final de tarde na véspera da nossa partida do parque.
Foto: Patrícia Carvalho

Ao longo dos meses seguintes, resolvemos as demais burocracias. Em resumo, esse foi o cronograma das principais atividades realizadas para organização da viagem:

  • 08/04: Tentativa sem sucesso de reserva de campsite no Canyonlands.
  • 17/05: Reserva de campsite no Mather Campground, Grand Canyon.
  • 20/05: Envio do fax com os formulários de inscrição para o sorteio de permits do Grand Canyon.
  • 10/06: Recebemos e-mail com o permit para a Escalante Route no Grand Canyon.
  • 14/06: Recebemos e-mail informando que não conseguimos o permit para a segunda travessia no Grand Canyon.
  • 18/06: Reserva de campsite no Fruita Campground, Capitol Reef.
  • 01/07: Compra de passagens aéreas.
  • 07/07: Reserva de hospedagem em Las Vegas para a chegada.
  • 12/07: Reserva de carro alugado.
  • 25/07: Reserva de hospedagem em Las Vegas para o retorno.

No restante desse artigo, contarei em detalhes como foi nossa experiência no Grand Canyon. Nesse outro artigo, escrevo sobre a segunda parte da viagem, incluindo o deslocamento do Grand Canyon até o Capitol Reef e nossa visita ao Capitol Reef. Nesse terceiro e último artigo conto as nossas experiências no Bryce Canyon e Red Rock Canyon. Além desses parques nacionais, passamos por outros lugares incríveis ao longo dos mais de 1.800 Km de estradas que percorremos cruzando os estados de Nevada, Arizona e Utah. Aproveito para deixar aqui uma lista de links para as principais referências que utilizamos para a preparação dessa viagem. Em conjunto com nosso relato, poderão ser úteis para o planejamento de uma nova excursão ao Grand Canyon, em particular, para a execução da Escalante Route:

Visão geral do nosso trajeto pela estrada
Visão geral do nosso trajeto pela estrada

Aproximação ao Grand Canyon

29/09) Voo Rio de Janeiro → Las Vegas

Às 21:05 estávamos partindo do Galeão com destino final Las Vegas. Já havíamos passado pela cidade algumas vezes nas excursões anteriores, e a princípio, não teríamos motivos para repetir a visita. Porém, essa é a cidade (com aeroporto internacional) melhor localizada para a visitação ao Grand Canyon. Sem contar que é um dos destinos nos EUA com voos mais baratos a partir do Brasil. Ao contrário das experiência anteriores, pela primeira vez, os voos de melhor custo benefício foram oferecidos pela United Airlines. Também pela primeira vez, nosso voo faria uma escala em Houston antes de seguir para Las Vegas. Além de sobreviver ao ar condicionado congelante desse voo, nosso próximo desafio da viagem seria conseguir realizar os procedimentos de imigração e alfândega dentro da curta janela de 1 hora e 45 minutos que teríamos em Houston.

30/09) Voo e preparação em Las Vegas

Por coincidência, dessa vez nosso voo para Las Vegas sobrevoou o Grand Canyon!
Por coincidência, dessa vez nosso voo para Las Vegas sobrevoou o Grand Canyon!

Após 10 horas de voo, chegávamos em Houston, Texas às 5:35 no horário local. Não tivemos problemas ao passar pela imigração, nem pela alfândega. Tivemos apenas um contratempo no raio-x para embarque, pois um dos colegas levava alimentos para caminhada na bagagem de mão. O agente separou a mochila para averiguação e aplicou ali mesmo um teste para narcóticos. Achamos curioso o teste pois o agente aplicou alguma substância apenas na parte externa da embalagem, e já se deu por satisfeito quanto ao seu conteúdo. Felizmente, o procedimento foi bem rápido. Seguimos para o nosso próximo portão de embarque, chegando ao local não mais do que 5 minutos antes do horário de embarque.

A Chrysler Pacifica alugada. Achamos o modelo muito similar ao Dodge Grand Caravan e a Hyundai Santa Fe que utilizamos nas outras vezes.
A Chrysler Pacifica alugada. Achamos o modelo muito similar ao Dodge Grand Caravan e a Hyundai Santa Fe que utilizamos nas outras vezes.

Às 7:20 estávamos partindo de Houston. Com mais 3 horas e 10 minutos de voo, chegávamos em Las Vegas. O aeroporto oferece um ônibus para a central de aluguel de automóveis. A viagem dura entre 5 e 10 minutos. Fomos direto para o estande da Avis. Era a primeira vez que alugávamos o carro com eles, e foi a primeira vez que a contratação foi feita através da Miles Car Rental (mesma empresa da Viajemos.com). Ao contrário das locações anteriores, a experiência com eles foi ruim. Na reserva, nos prometeram motorista adicional incluído no preço. Foi um fator crucial durante nossa escolha, pois viajaríamos por centenas de quilômetros e precisaríamos contar com mais de um motorista. No entanto, chegando no balcão, quiseram nos cobrar US$ 55 extras, por dia, para termos essa cobertura. Ignoraram a confirmação impressa, emitida pela Miles, alegando que o que valia era o que estava aparecendo ali no sistema da Avis. Cansados da viagem e com muito a resolver ainda no restante do dia, acabamos ficamos sem a cobertura.

Durante nossa passagem por Las Vegas, a cidade recebia a banda U2 no Sphere. O palco havia sido inaugurado na véspera da nossa chegada.
Durante nossa passagem por Las Vegas, a cidade recebia a banda U2 no Sphere. O palco havia sido inaugurado na véspera da nossa chegada.

Seguimos para o hotel. Nosso velho conhecido, o Super 8, desta vez não estava com preços convidativos. Acabamos arriscando no Mardi Gras. Acabou se revelando também uma má escolha. Atendimento ruim. Instalações decadentes. Banheiro sujo e com reparos improvisados. Um dos quartos teve visita de uma barata, e encontramos meias sujas esquecidas por outros hóspedes, indicando uma total falta de cuidados da equipe de limpeza. Para completar, estava acontecendo uma obra grande na Paradise Road, causando um engarrafamento constante que sempre nos tomava um tempo extra para chegar ou sair do hotel. O Super 8 não oferece nenhum luxo, mas pelo menos, nunca tivemos problemas com limpeza. Sem contar com a sua ótima localização e os quartos térreos, muito úteis para nossas viagens com vários quilos de equipamentos.

Corredores do Mardi Gras
Corredores do Mardi Gras

Deixamos nossas malas na recepção e seguimos para o Boca Park. Felizmente, o céu estava encoberto e as temperaturas bem mais amenas do que havíamos pegado na cidade nas últimas vezes. Fizemos nosso já tradicional almoço no Whole Foods Market, passamos na REI para buscar as compras que já havíamos encomendado do Brasil, e adquirir outros equipamentos que utilizaríamos durante a viagem. Compramos um chip de celular para dados móveis e passamos no Wallmart para completar as compras dos alimentos que não adquirimos no próprio Whole Foods.

Cansadíssimos da viagem de avião e de toda a correria ao longo dia, retornamos para o hotel em torno das 18:00. Ainda tínhamos pela frente todo o ritual de preparação das mochilas e alimentos para as caminhadas. O quarto do hotel mais uma vez se transformava naquele cenário caótico, com embalagens de comidas e equipamentos de montanhismo espalhados em cada metro quadrado. Saímos para jantar em algum momento – creio que fomos a um Denny's pelas redondezas – e retornamos em torno das 21:40 para apagar nas nossas camas. Seria o último sono numa cama pelas próximas 13 noites.

01/10) Estrada de Las Vegas para o Grand Canyon

A famosa U.S. Highway 66, ou Route 66, na cidade de Seligman, Arizona
A famosa U.S. Highway 66, ou Route 66, na cidade de Seligman, Arizona

Com toda agitação, expectativas, e também com a frustração com o aluguel do carro, não tive uma boa noite de sono. Ainda assim, não faltavam motivos para acordar animado. Antes do final daquele dia, estaríamos de frente para o Grand Canyon. A partir de Las Vegas, a viagem para o parque, sem paradas, deveria levar pouco mais de 4 horas. Não tínhamos nenhuma programação específica para aquele dia no parque, então, não tivemos pressa na saída de Las Vegas. Nossas únicas obrigações ao chegar seriam o check-in no acampamento e obter informações atualizadas sobre as condições das trilhas e da meteorologia com os park rangers. Finalizamos a organização de equipamentos, tentamos sem sucesso telefonar para solucionar a questão com o motorista adicional do carro, e partimos para a estrada em torno das 10:00.

Fachada em estilo "velho oeste" na pequena cidade de Seligman
Fachada em estilo "velho oeste" na pequena cidade de Seligman

Com cerca de 1 hora de viagem, passamos sobre o Rio Colorado, na boca da Roover Dam. Infelizmente, não é possível parar para fotos ali. Em torno de 13:20 estávamos com fome e aproveitamos uma saída da Interstate 40 para procurar algum restaurante. Acabamos chegando na curiosa cidade de Seligman. Naquele ponto a interestadual corre paralela à lendária rodovia 66. Descobrimos que Seligman era uma localidade de grande relevância nos tempos de ouro da Route 66. Hoje, preserva algumas fachadas históricas que ajudam a contar sobre o passado da cidade. Posteriormente, descobrimos também que Seligman teria servido de inspiração para o roteiro do filme "Carros", da Pixar. Na trama, uma cidadezinha perde sua relevância após a construção de uma moderna rodovia nas proximidades. Almoçamos nos restaurante Roadkill, também curioso, com decoração e temática irreverente.

Entrada do irreverente restaurante Roadkill em Seligman
Entrada do irreverente restaurante Roadkill em Seligman

Após a refeição e algumas fotos na cidade, tomamos a estrada novamente. Eram perto de 15:40 quando passávamos pela cidade de Willians. Foi por lá que nos demos conta de que nos descuidamos com o controle do tempo de viagem. Começamos a perceber que provavelmente não chegaríamos ao parque a tempo de fazer o check-in, e encontrar o Backcountry Information Center aberto. Com certa apreensão, seguimos viagem pelo trecho final até a portaria do Grand Canyon. Chegamos na portaria faltando poucos minutos para as 17:00. Fomos informados de que ainda seria possível fazer o check-in no Mather Campground mas, de fato, o Visitor Center e Backcountry Center já estavam fechados. Na verdade, esses serviços haviam fechado bem mais cedo do que o normal (reflexo de uma possível paralisação federal – government shutdown – que estava se desenrolando).

Estilo "velho oeste" também mantido na cidade de Willians, Arizona
Estilo "velho oeste" também mantido na cidade de Willians, Arizona

Seguimos direto para o check-in no acampamento. Nos apresentamos na administração e resolvemos com sucesso essa etapa. Aproveitamos para perguntar se ainda conseguiríamos encontrar um park ranger em algum lugar, para tirarmos dúvidas sobre a nossa travessia. O funcionário disse que ele próprio já tinha trabalhado com os rangers no passado, e talvez pudesse nos ajudar. Explicamos que faríamos a Escalante Route no dia seguinte, e que uma das nossas principais preocupações era com a disponibilidade de água na Hance Spring, local do nosso terceiro pernoite. Ele não tinha informações muito atualizadas para nos oferecer, mas o "sermão" sobre a Escalante Route parecia estar na ponta da língua.

Cartaz do Parque na Grand View Trailhead alerta os visitantes sobre os riscos associados ao calor no cânion
Cartaz do Parque na Grand View Trailhead alerta os visitantes sobre os riscos associados ao calor no cânion
Foto: Patrícia Carvalho

Nos alertou sobre todos os perigos das caminhadas dentro do cânion, nos disse que, mesmo com nossa experiência em outras regiões de deserto, deveríamos ter escolhido travessias mais simples no Grand Canyon, e que ele mesmo já tinha ajuda em operações de resgate lá dentro. Por fim, nos disse que não poderia nos impedir de ir mas, nas suas palavras, classificou nosso roteiro como "not the smartest choice".

Sua postura não nos surpreendeu. Estava em consonância com o que observamos do Parque durante todo o processo de obtenção de permits. Compreensível. Com milhões de visitantes dos mais variados perfis todos os anos, o Parque precisa ser cuidadoso. E os riscos são reais. O Grand Canyon é o parque nacional norte-americano com maior número de fatalidades por ano. Até aquele momento, só em 2023, haviam ocorrido 4 mortes de montanhistas em atividade. Duas delas, diretamente ligadas ao calor excessivo.

Ouvimos seus conselhos atentamente, mas aquela não era a primeira vez que éramos desaconselhados a seguir com um roteiro de montanhismo; seja ali nos EUA, ou no Brasil. Lembro de reações bem semelhantes, por exemplo, na nossa excursão de 2017 à Chapada Diamantina. As pessoas frequentemente estão genuinamente preocupadas com a segurança do grupo, e à vezes acabam adotando uma postura quase de intimidação. Com a experiência porém, aprendemos a confiar na nossa preparação e perceber a hora de abortar um plano, ou seguir em frente com ele. Não chegamos até ali para desistir da Escalante Route. A frase "not the smartest choice", junto com a "agressive itinerary, hiker insisted" se juntavam ao peso das nossas cargueiras. Tínhamos muito respeito pelo cânion, mas também precisávamos manter o bom humor. Não perderíamos a oportunidade de fazer piadas com elas, mas para isso, aguardaríamos estarmos todos sãos e salvos, de volta à borda do cânion.

Não desistimos de encontrar um park ranger e, claro, queríamos ter nossa primeira visão do Grand Canyon. Retornamos para o carro e seguimos para a Canyon Village. Não podemos dizer que ficamos exatamente surpresos, afinal, estávamos na alta temporada do parque. Mas foi impactante como o parque encontrava-se lotado. Notávamos o fluxo intenso de pessoas, e observávamos carros estacionados em cada canto onde o estacionamento fosse permitido. Passamos bem ao lado da Hopi House, próximo à borda do cânion, e não resistimos à estacionar e chegar até o mirante. Depois de tanto tempo aguardando essa hora, era difícil imaginar qual seria o sentimento ao ver o Grand Canyon pela primeira vez.

Nossa primeira visão do Grand Canyon. Vista a partir da Hopi House.
Nossa primeira visão do Grand Canyon. Vista a partir da Hopi House.

Na verdade, houve um misto de emoções. Se precisasse, porém, buscar uma só palavra para descrever aquele momento, seria "assombroso". Era próximo das 17:40 e o sol já descia, tingindo de diversos tons de vermelho as paredes do cânion. Nuvens baixas e densas cobriam toda a região, dando maior dramaticidade à cena. Claro que estávamos fascinados por aquela paisagem. Mas era a grandiosidade do universo que se desdobrava diante dos nossos olhos, que nos estremecia. Eram cânions dentro de cânions, formando um labirinto de rochas, numa escala que desconhecíamos. Mal tínhamos tido o primeiro contato com tudo aquilo, estaríamos no dia seguinte adentrando aqueles vazios, até chegar ao fundo do cânion, no Rio Colorado, que se quer era visível dali. Não fosse a pressão da eminente travessia sobre os nossos ombros, certamente estaríamos vivenciando sentimentos mais leves. De toda forma, como montanhistas, gostamos de nos sentir diminutos perante as obras imponentes da natureza. Estivéssemos aos pés de uma enorme montanha, quereríamos alcançar o seu cume. Tivéssemos chegado à borda daquele cânion em qualquer outra circunstância, quereríamos mergulhar no seu interior.

Nosso campsite no Mather Campground
Nosso campsite no Mather Campground
Foto: Catia Valdman

Mas as grandes conquistas são feitas em pequenas etapas. Respiramos fundo, retornamos para o carro, e continuamos a nossa exploração da Canyon Village. Não nos demoramos por ali, entretanto. A falta de vagas nos estacionamento e a hora avançada nos fez retornar logo ao Mather Campground. Nas próximas horas, montamos nossas barracas, garantimos nosso último banho com chuveiro e sabonete dos próximos quatro dias, e o último jantar com direito à cadeiras e mesas. O jantar foi feito no Yavapai Lodge. A temperatura já havia caído drasticamente em comparação ao resto do dia. Voltamos ao acampamento em torno das 21:00 para ainda fazer os últimos ajustes nas cargueiras, e garantir algumas horas de sono antes da estreia no Grand Canyon.

Escalante Route

02/10) Lipan Point → Cardenas Beach

Visual do Grand Canyon a partir do Lipan Point, na manhã de início da nossa travessia
Visual do Grand Canyon a partir do Lipan Point, na manhã de início da nossa travessia

Por volta das 1:30 da madrugada, acordamos com o barulho da chuva sobre as barracas. O sono já não era dos mais tranquilos, devido à apreensão com a travessia que se iniciaria na manhã seguinte. A perspectiva de pegar chuva dentro do cânion, principalmente depois de todas advertências que tivemos ao longo dos meses de planejamento, não colaborava em nada para uma noite restauradora. A julgar pelo barulho, a chuva não estava muito forte, mas ouvíamos as árvores balançando ao longe, e percebemos que ocorreram diversas pancadas ao longo de toda a noite.

Iniciando a descida da Tanner Trail, a partir do Lipan Point
Iniciando a descida da Tanner Trail, a partir do Lipan Point

Levantamos ainda no escuro para desmontar acampamento. Faziam 4°C. Apesar da temperatura bem baixa, o ar seco fazia total diferença na nossa percepção da temperatura. Estivéssemos na serras do sudeste brasileiro, certamente estaríamos sofrendo muito mais com o frio. A chuva havia nos dado uma trégua, mas os sobretetos das barracas estavam ainda bastante molhados. Mesmo com sensação térmica mais confortável do que estamos acostumados, a tarefa de secar as barracas foi dolorosa. Finalizamos a montagem das cargueiras, carregamos toda a tralha no carro e, às 6:40, deixamos o Mather Campground.

Um dos lances de desescalada, depois que perdemos a trilha nas imediações da 75 Mile Saddle
Um dos lances de desescalada, depois que perdemos a trilha nas imediações da 75 Mile Saddle
Foto: Patrícia Carvalho

O dia foi clareando enquanto percorríamos a Desert View Drive. Chegamos às 7:20 no nosso destino, o Lipan Point, um dos últimos mirantes antes da portaria leste do parque. Não tivemos dificuldades para estacionar, mas já haviam vários outros carros no local, certamente visitantes que acompanharam dali o nascer do sol. Tiramos algumas fotos no mirante, fizemos os últimos ajustes nos equipamentos, e estávamos pronto para iniciar a Tanner Trail, primeira seção da nossa travessia. As mochilas mais leves estavam com 15 Kg, incluindo 3 litros de água. Nosso único ponto de reabastecimento seria o Rio Colorado, no fundo do cânion. A trailhead fica um pouco recuada do mirante, em uma vertente lateral daquela encosta.

Começamos a caminhada às 7:50. Relativamente tarde, para um dia que sabíamos que não seria fácil. Porém, depois de todo o desgaste da viagem até ali, precisávamos uma noite razoável de sono. Ainda vestíamos os anoraks pois ventava bastante no mirante. Assim que começamos a descer a encosta, ficamos mais abrigados do vento e não demorou até começarmos a guardá-los nas mochilas. Foi emocionante iniciar a descida. Havia um mundo desconhecido, e há muito tempo aguardado, se descortinando à nossa frente. Estávamos recém chegados no Grand Canyon, e a medida que avançávamos, todas as suas cores, formas, texturas iam se apresentando de forma súbita e intensa aos nossos olhos.

Avançando pela lateral do Cardenas Butte. À direita e ao fundo, parte da parede principal do Grand Canyon
Avançando pela lateral do Cardenas Butte. À direita e ao fundo, parte da parede principal do Grand Canyon

Para os padrões dos parques nacionais norte americanos, a Tanner Trail é uma trilha bem rústica. Não há sinalização fora alguns totens de pedra, e parte da descida se dá sobre pedras grandes bastante irregulares. A trilha possui pouco mais de 12 Km de extensão, saindo dos 2250 metros de elevação na borda sul do Grand Canyon, e indo até os 800 metros de elevação ao atingir o Rio Colorado, na Tanner Beach. Apenas em diferença de elevação, são perdidos 1450 metros de altitude. Em desnível acumulado, são mais de 1700 metros de descida. Um verdadeiro desafio para os joelhos, não só pelo desnível acumulado, mas por conta das pedras irregulares e, especialmente, porque existem poucas subidas, fazendo com que o esforço em cima das articulações seja constante. A descida acumulada seria equivalente a sair do cume da Pedra do Sino, no Parque Nacional da Serra dos Órgãos, descer até a portaria de Teresópolis e seguir pela BR-116 até a sede de Guapimirim.

Avançando pela lateral do Cardenas Butte
Avançando pela lateral do Cardenas Butte

Apesar da preocupação com a chuva no dia anterior, o céu estava com aparência bem melhor, e as nuvens baixas que insistiam em permanecer por ali, garantiam alguma proteção contra o sol. Não podíamos esperar um tempo melhor para caminhar no deserto. Às 8:30 sentimos alguns pingos de chuva, mas não passaram disso. A temperatura era de 10°C. Às 9:15, nos aproximávamos da 75 Mile Saddle, que divide o 75 Mile Canyon (à oeste), do Tanner Canyon (à leste). Nesse ponto, perdemos um desvio brusco que a trilha faz para a direita, e continuamos por uma parte mais elevada do terreno. Percorremos cerca de 250 metros ali por cima, quando chegamos ao final do platô. Desconfiamos de que estávamos fora da trilha, mas conseguíamos ver a sua continuação à frente. Decidimos realizar duas pequenas desescaladas de poucos metros de altura, para evitar retroceder a trilha. Esse equívoco poderia ter sido evitado, já que tínhamos lido o relato de outro montanhista que havia cometido o mesmo erro.

Chegada ao Rio Colorado, na Tanner Beach
Chegada ao Rio Colorado, na Tanner Beach
Foto: Patrícia Carvalho

Bem ao longe, à nossa direita, observávamos a torre do Desert View Point, na borda do cânion. A construção seria notada algumas vezes ao longo da nossa caminhada, cada vez mais distante. Seus 21 metros de altura, podem não ser muito para uma torre de observação, mas eram suficientes para que ela se destacasse no planalto superior do cânion. Às 11:15, nos encantávamos com nossa primeira visão do Rio Colorado durante a descida. A temperatura havia subido para 22°C, e uma brisa agradável soprava de vez em quando. Havíamos cruzado com pouquíssimas pessoas, algumas subindo a trilha com equipamentos que pareciam ter sido utilizados no rafting no Colorado. Às 14:10 a temperatura já havia subido para 25°C, o vento havia parado, o sol e a longa descida já cobravam o seu preço do grupo. Com mais uma hora de caminhada, finalmente alcançamos a Tanner Beach e, pela primeira vez, colocamos nossas mãos nas águas do Rio Colorado.

Caminhando às margens do Rio Colorado após a Tanner Beach
Caminhando às margens do Rio Colorado após a Tanner Beach

Estávamos felizes com a conquista, mas vencer a Tanner Trail era só a primeira parte do nosso dia. Como nos comprometemos a realizar a Escalante Route em 4 dias, precisávamos ser um pouco mais ousados. Após chegar à Tanner Beach, continuaríamos por mais quase 5 Km, alcançando a Cardenas Beach. Antes de seguir viagem, porém, foi preciso reunir o grupo para reavaliar nossos planos. Àquela altura, a dor nos joelhos, as bolhas e o cansaço físico já dificultava o progresso do grupo, e gerava preocupação com o que nos esperava não só naquele dia, mas também nos próximos. Consideramos abortar a travessia e pernoitar ali mesmo na Tanner Beach, retornando para a borda do cânion no dia seguinte. O retorno pela Tanner Trail não seria fácil, mas se mantivéssemos os planos originais, quanto mais avançássemos para o interior do cânion, mais complicado seria sairmos no caso de algum problema. Por fim, decidimos insistir em seguir para a Cardenas Beach. Dormiríamos lá e, após uma noite de descanso, avaliaríamos a situação. Se fosse realmente necessário abortar, teríamos o terceiro dia para retornar para a Tanner Beach, e o quarto dia para realizar a inevitável subida pela Tanner Trail.

Atravessando canais de escoamento transversais à trilha após a Tanner Beach
Atravessando canais de escoamento transversais à trilha após a Tanner Beach

O trecho entre a Tanner Beach para a Cardenas Beach segue relativamente paralelo ao Rio Colorado. Mas ainda assim, consegue acumular mais 240 metros em aclives e 250 metros em declives. Isso porque a trilha segue pela encosta do cânion, rasgada frequentemente por canais naturais de escoamentos de água. Os canais erodem a encosta, obrigando a trilha a periodicamente descer e subir transversalmente por dentro dessas valas. Vagarosamente, vencemos esses quilômetros finais, chegando à Cardenas Beach às 18:00. Encontramos lá um grupo de 3 receptivos americanos que naquele dia haviam feito apenas o trecho da Tanner para Cardenas Beach, e há muito tempo já estavam ali instalados, curtindo a praia. O sol já começava a baixar atrás das paredes do cânion. Mal tivemos tempo de curtir um banho no Colorado. Rapidamente montamos as barracas, tentando ainda aproveitar os momentos finais de claridade.

Cardenas Beach
Cardenas Beach
Foto: Gabriel Lousada

Além do grupo de americanos, logo conhecemos outros moradores da praia. Primeiro, um simpático pato, totalmente habituado à presença das pessoas, circulava pela área. Começamos os preparativos para o jantar, e os outros moradores se apresentaram. Correndo dentro das moitas ao redor do acampamento, subindo e descendo pelos galhos das árvores, correndo por cima de nossas mochilas e sobre os equipamentos espalhados no chão e, finalmente, deliberadamente avançando nas nossas comidas. Pequenos camundongos ágeis e destemidos, juntamente com ratos maiores e igualmente ousados, estavam por toda parte. Reunimos todas as comidas em locais bem visíveis, e com o auxílio das lanternas de cabeça, mantínhamos guarda constante, enquanto tentávamos preparar o jantar e comer. Se nos descuidássemos por menos de um minuto, era garantia de que algum rato estaria tentando invadir um saco de alimento.

Nossa área de acampamento em Cardenas Beach
Nossa área de acampamento em Cardenas Beach
Foto: Gabriel Lousada

Uma das barracas, ligeiramente mais afastada das duas outras, parecia despertar especial curiosidade dos roedores. Estavam circulando insistentemente por ali, e pareciam estar tentando uma invasão. Quando a dona da barraca entrou para uma inspeção, era tarde demais. Uma embalagem vazia de comida tinha sido acidentalmente deixada no bolso interno da barraca. Os ratos já haviam feito um furo para alcançar os restos de alimento. A barraca nova, havia sido estreada na noite anterior no Mather Campground. Tentamos um remendo improvisado com Silver Tape, e continuamos o ritual do jantar, já imaginando que uma noite difícil estava por vir. Para ser sincero, havíamos lido previamente recomendações de uso de rat sacks dentro do cânion. Porém, imaginávamos que seria mais um local onde conseguiríamos conviver com esse inconveniente, apenas não deixando comida desassistida. A quantidade e ousadia dos roedores ali se mostrou bem superior às nossas expectativas.

Pato morador da Cardenas Beach
Pato morador da Cardenas Beach
Foto: Gabriel Lousada

Para dormir, decidimos juntar as comidas e quaisquer itens com odor em sacos bem fechados e dormir "abraçados" com eles dentro das barracas. Pelas experiências anteriores, contanto que estivéssemos do lado de dentro junto com a comida, os roedores não arriscariam a invasão. O sono nas noites anteriores não foi tranquilo, e nessa também não. O barulho dos ratos do lado de fora se estendeu por toda a noite. Volta e meia acordávamos para verificar se as coisas estavam sob controle. Minha mochila foi deixada num saco plástico no avanço da barraca. Algumas vezes ao longo da noite eu acendia a lanterna para checar se o barulho que eu ouvia seria algum rato tentando rasgar a mochila. Em uma das inspeções, vi um camundongo passeando por cima dela.

Alguns dos remendos que foram necessários na barraca invadida pelos ratos
Alguns dos remendos que foram necessários na barraca invadida pelos ratos

A madrugada já estava avançada quando acordei com um grito vindo da mesma barraca que havia sido invadida durante o jantar. Minha amiga dizia que um rato tinha entrado novamente, dessa vez, com ela lá dentro, e passado por cima do seu saco de dormir! Saí para ajudar na operação de caça ao rato. Esvaziamos toda a barraca, inspecionamos mochila, saco de dormir e outros itens sem encontrar o invasor. Sem entender o que havia acontecido, retornamos para as barracas para tentar descansar um pouco mais antes da alvorada. Pouco depois, ela descobriu que o rato havia feito um segundo furo na barraca. Foi por ali que ele havia entrado e saído durante a nova visita. Certamente, instigados pelo sucesso que haviam logrado na primeira invasão, aquela barraca em especial se tornara irresistível para novos ataques. As duas outras passaram ilesas pela noite tumultuada.

03/10) Cardenas Beach → Papago Beach

Rio Colorado visto de mirante pouco depois da saída da Cardenas Beach
Rio Colorado visto de mirante pouco depois da saída da Cardenas Beach

Nosso plano para o segundo dia de travessia era deixar a Cardenas Beach e avançar até a boca do Red Canyon, resolvendo já nesse dia a escalada da infame Papago Wall e descida da Papago Slide. Porém, com as dificuldades que tivemos no dia anterior, optamos por uma abordagem mais conservadora. Decidimos avançar apenas até a Papago Beach, postergando para o terceiro dia a tal escalada e o trecho até o Red Canyon. Com isso, a distância a ser percorrida ficaria, inclusive, mais equilibrada entre os segundo e terceiro dias. Após uma noite de sono (não das melhores) e essa revisão do roteiro, estávamos mais confiantes para manter os planos de continuar avançando cânion adentro.

Caminhando pela Dox Traverse
Caminhando pela Dox Traverse

Retomamos a caminhada às 7:35. A temperatura era de 18°C. Nossos vizinhos americanos partiram alguns minutos antes na mesma direção. Relataram que também tinham tido problemas com os ratos. A iluminação do sol da manhã garantia ao cânion cores vibrantes e nos animava para encarar mais um dia de trilha. Logo após a saída, começamos a ganhar altitude e tivemos belas vistas do Colorado cortando o cânion. Nosso próximo desafio foi a Dox Traverse. Nesse trecho de cerca de 3 Km, a trilha segue pela lateral de uma grande encosta. A trilha em si ganha altitude de forma muito gradual, porém a encosta é bastante íngreme e a calha da trilha é estreita, exigindo atenção. Os bastões foram de grande importância para aumentar o equilíbrio, especialmente nos trechos (poucos) que exigiram uma passada ou outra mais delicada.

Rio Colorado visto do final da Dox Traverse
Rio Colorado visto do final da Dox Traverse

Seguimos pela encosta contornando a montanha e entrando no Escalante Canyon. Começamos a descer em direção ao leito seco do Escalante Creek. Cruzamos o leito às 11:40 e paramos 30 metros adiante para descansar. Ficamos de frente para a grande montanha que havíamos contornado. Alguns minutos depois, começamos a ver o grupo dos americanos, que havíamos ultrapassado, descendo pela trilha. Eram pontos minúsculos naquela parede de pedras e cascalho, praticamente sem vegetação. Foi interessante ter a perspectiva de nossa dimensão diminuta frente àquela montanha enorme, que por sua vez, era apenas uma pequena dobra dentro de toda a estrutura interna do Grand Canyon. Seguimos viagem descendo até chegarmos novamente ao Rio Colorado, agora na Escalante Beach.

Chegada à Escalante Beach
Chegada à Escalante Beach

Diferentemente do dia anterior, o céu estava sem nuvens e a trilha oferecia poucas oportunidades de sombra. Para nossa sorte, volta e meia uma brisa agradável soprava. Eram 13:15 e a temperatura chegara aos 30°. Já estávamos desconfortáveis com o calor. A chegada na praia foi muito bem-vinda. Mesmo não sendo nosso ponto de pernoite, não resistimos a uma parada um pouco mais longa para mergulhar no Colorado. Suas águas estavam geladas, e o rio é capcioso. Próximo à margem, conseguíamos entrar com água até a cintura. Mas logo a areia ficava fofa demais e a profundidade aumentava subitamente, assim como a correnteza. Tentei me afastar um pouco da margem para um mergulho melhor, mas assim que senti o corpo sob o efeito da corrente, nadei rapidamente de volta para onde conseguia fincar os pés no chão.

Avistamos uma excursão de rafting ancorada a poucos metros da boca do 75 Mile Canyon
Avistamos uma excursão de rafting ancorada a poucos metros da boca do 75 Mile Canyon

Aproveitamos para reabastecer nossa água. Na tarde anterior, já havíamos constatado que ela estava bem mais clara do que havíamos nos preparado para tratar. Havíamos trazido um balde retrátil para decantação, e filtros portáteis. Acabamos não usando nenhum dos dois. A água tinha até um sabor agradável. Fizemos o tratamento apenas com cloro. Olhando para trás, creio que a melhor abordagem teria sido aplicar também a filtragem, afinal estamos falando de um rio cuja nascente está a centenas de quilômetros dali. Enquanto aproveitávamos nossa parada, os americanos nos alcançaram novamente. Antes de retomarmos a trilha, nos despedimos pois eles consideravam a possibilidade de encerrar o dia naquela praia mesmo. Não voltamos a encontrá-los no restante da viagem.

Chegando ao ponto de descida para o fundo do 75 Mile Canyon
Chegando ao ponto de descida para o fundo do 75 Mile Canyon
Foto: Patrícia Carvalho

Começamos a ganhar altitude novamente, vendo a Escalante Beach sendo deixada para trás. Em 20 minutos estávamos na borda do 75 Mile Canyon. Olhando para baixo, do topo do penhasco, vimos uma excursão de rafting ancorada na praia, na boca do cânion. Começamos a avançar pela sua borda norte. O 75 Mile Canyon é talvez um dos trechos mais interessantes do percurso. Mais uma vez, ficava claro como o Grand Canyon é um universo contendo uma diversidade de mundos dentro dele. Estávamos dentro do Grand Canyon, agora andando na borda de um belo cânion interno. O 75 Mile é bem estreito, com uma altura considerável próximo à boca, mas a medida que avançávamos pela sua borda, observávamos que o fundo ia rapidamente se elevando lá em baixo. Às 14:45 faziam 35°C, e não víamos a hora de descer para a parte interna (e sombreada) do cânion.

Descida para o fundo do 75 Mile Canyon
Descida para o fundo do 75 Mile Canyon
Foto: Patrícia Carvalho

Às 15:00, chegamos ao vértice do cânion. Na verdade, olhando os mapas, vemos que o 75 Mile se estende por vários quilômetros além, chegando até a 75 Mile Saddle, que cruzamos no dia anterior. Mas da nossa perspectiva, aquele ponto se parecia muito com um vértice, ao menos, um "vértice local". Ali, para seguirmos a travessia, era necessário descer para o fundo do cânion. Lá em baixo, um totem de pedra grande deixa claro que a desescalada seria inevitável. As fotos que eu havia visto anteriormente me iludiram quanto altura da parede. A descida era bem maior do que eu imaginava. Pouco a pouco, analisamos o terreno e conseguimos descer sem problemas. Cerca da metade da descida fizemos caminhando lateralmente à rocha, com a ajuda dos bastões. Apenas na metade inferior nos posicionamos de frente para rocha, como numa desescalada propriamente dita.

Começamos a voltar em direção à boca do cânion, agora caminhando pelo fundo. A temperatura amena lá embaixo, e o visual sensacional daquelas paredes de pedra renovaram nossas energias. Era um daqueles locais em que, a cada curva, não resistíamos em tirar mais fotos. Em certo ponto, cruzamos com algumas pessoas da excursão de rafting que havíamos avistado do alto do penhasco. Estavam fazendo uma visita ao 75 Mile cânion. Alcançamos a sua boca e rumamos para a esquerda, continuando a seguir o Rio Colorado. A trilha seguia numa encosta íngreme, a uns 30 metros acima do leito do rio. Percorremos mais um quilômetro dessa forma, até começar a descer rapidamente para a Papago Beach. Após uma ou duas desescaladas bem simples, estávamos pisando na areia da praia. Finalizamos a caminhada de 14 Km pouco antes das 17:00.

Atravessando o interior do 75 Mile Canyon
Atravessando o interior do 75 Mile Canyon
Foto: Patrícia Carvalho

Chegamos no destino uma hora antes, em comparação ao dia anterior, e estávamos nos sentindo menos desgastados fisicamente. Conseguimos tomar mais um banho no Colorado e lavar algumas roupas. Dessa vez, estávamos sozinhos na praia, e havia uma diversidade de bons pontos para montar nossas barracas. Fizemos a montagem e partimos para o jantar com tranquilidade. Chegamos a avistar dois ratos na área, por isso, mantivemos nossa guarda levantada. Felizmente, não nos incomodaram, nem enquanto cozinhávamos, e nem no restante da noite. Fomos dormir às 20:30. Faziam agradáveis 18°C. Na minha barraca, iniciamos a noite com as duas portas externas abertas e no decorrer da noite fechamos uma delas. Lembro de acordar na madrugada com o nascer da lua minguante iluminando a lona da barraca. Dormimos bem ao lado da Papago Wall: Nosso primeiro desafio da manhã seguinte. Apesar disso, dormimos a melhor noite até então. Estávamos mais confiantes, e sem ratos.

04/10) Papago Beach → Hance Spring

Acampamento na Papago Beach
Acampamento na Papago Beach

Acordamos às 6:00. Faziam 15°C, um pouco menos do que havíamos medido à noite. Diferentemente da nossa chegada no Parque, o frio não foi uma preocupação durante os dias no interior do cânion. No fundo do cânion, a temperatura é aproximadamente 10°C mais elevada do que na borda e, aparentemente, mais estável durante a madrugada. Certamente devido à proximidade do rio. Às 8:00 começamos nossa despedida da agradável estadia na Papago Beach. Visitamos uma pequena gruta ao lado da parede que iríamos escalar, e iniciamos a subida. Ao lado da Papago Beach um grande deslizamento de pedras ocorreu, bloqueando a passagem junto à margem do Rio Colorado. A única alternativa para seguir viagem é escalar a face do penhasco voltada para a praia, chamada de Papago Wall, avançar alguns metros pelo topo, e descer pelo desmoronamento do outro lado.

Subindo a Papago Wall
Subindo a Papago Wall

Levamos uma fotografia da "via" para consultar na base. Identificamos os pontos principais e iniciamos a escalada. Durante a subida, estivemos sempre atentos aos totens existentes. Sabíamos que um dos erros comuns era subir mais do que o necessário, ou entrar em lances mais difíceis do que o necessário. Com atenção e bom senso, creio que fizemos a subida pela rota mais simples e segura o possível. De fato, tivemos que usar as mãos frequentemente, e ser cuidadosos nas passadas. Não foi necessário, porém, retirar as cargueiras em nenhum momento. Em comparação à Carrasqueira da Pedra da Gávea, bem conhecida dos cariocas, a subida da Papago Wall talvez tenha passagens ligeiramente mais técnicas, porém com exposição mais controlada. Na carrasqueira estamos subindo uma parede desprotegida de forma contínua, já na Papago Wall existem mais oportunidades de "respirar" entre um lance e outro, enquanto gradativamente galgamos platôs superiores. A aderência da rocha é muito boa e as agarras de mão também.

Um dos lances finais da subida da Papago Wall
Um dos lances finais da subida da Papago Wall

Após cerca de 30 minutos de subida num ritmo super tranquilo, todo o grupo estava no topo. Curtimos o belo visual lá do alto, mas pairava no ar a expectativa sobre o que encontraríamos na Papago Slide. Segundo nossos estudos prévios, esperávamos que a subida da Papago Wall seria mais tranquila do que a descida da Papago Slide. Queríamos estar errados sobre isso, mas assim que nos deparamos com o desmoronamento, tivemos certeza de que a descida não seria brincadeira. Não tivesse estudado o caminho anteriormente, ao me deparar com aquela cena, certamente diria que estávamos no lugar errado. O desmoronamento é consideravelmente alto, e fazendo jus ao que havia lido em diversos relatos, é formado por rochas de tamanhos dos mais variados, empilhadas de forma bastante caótica e instável.

Observando a Papago Slide antes de iniciarmos sua descida
Observando a Papago Slide antes de iniciarmos sua descida

Antes de encarar o obstáculo, consultamos agora uma fotografia da rota de descida, e identificamos novamente os pontos principais. Alguns deles estavam bem nítidos na foto, mas observando suas posições no terreno era duro de acreditar que passaríamos por ali. Respiramos fundo e começamos. Seguimos a orientação de manter o grupo bem próximo, para evitar que o eventual deslocamento de uma pedra por um integrante atingisse o outro. Logo nas primeiras passadas verifiquei que o alerta sobre as rochas instáveis deveria ser levado a sério. De fato, existem muitas rochas nessa situação. Várias delas em posições que poderiam ser muito úteis para realizar certas passagens, porém como estão soltas se tornam verdadeiras armadilhas. O trecho inicial foi o mais delicado. A dificuldade dos lances foi reduzindo a medida que fomos perdendo altitude. Em certo momento, observamos lá em baixo uma excursão de rafting calmamente deslizando pelas águas do Colorado. Um curioso contraste com nossa adrenalina da descida. Próximo ao final, já pudemos voltar a utilizar os bastões e nos mover mais caminhando do que se esgueirando ou desescalando pedras.

Excursão de rafting desliza pelo Colorado enquanto descemos a Papago Slide
Excursão de rafting desliza pelo Colorado enquanto descemos a Papago Slide

Finalizamos a descida às 9:20. Respiramos aliviados por ter vencido com sucesso o último, e maior, obstáculo da Escalante Route. Uma segunda excursão de rafting passou por nós deslizando pelo Colorado. Seguimos por trecho atípico, relativamente próximo do leito do rio, volta e meia passando por cima de blocos grandes de pedra, até atingir uma trilha bem aberta, ainda próxima ao leito, que nos levou até a boca do Red Canyon. Seguimos paralelo ao Colorado, agora ganhando altitude e nos afastando da margem, em direção ao Mineral Canyon. Começava ali a gradual retomada de elevação em direção à borda do Grand Canyon, que só seria finalizada no dia seguinte. O céu estava totalmente aberto e às 11:20 já faziam 30°C, mais quente que nos dias anteriores no mesmo horário.

O grupo avança pela lateral do Mineral Canyon
O grupo avança pela lateral do Mineral Canyon

Às 12:15 começamos a avançar para dentro do Mineral Canyon. Às 14:15 sofríamos com o calor. Ventava pouco e, sob o sol, faziam 40°C. Caminhávamos pensando na próxima sombra, que demorava a surgir, e certamente não passaria de uma pedra maior, com alguma cavidade que pudesse no abrigar. Ficava claro como o tempo havia sido generoso nos nossos primeiros dias de caminhada, e como a escolha da janela acertada é essencial para uma excursão dentro do Grand Canyon. Claro que o calor de 40°C estava sendo um desafio, e tem riscos relevantes, mas era interessante também notar como a baixa umidade do ar reduzia significantemente o desgaste e desconforto. Eu lembrava dos treinos na Urca, com temperaturas não maiores do que os 30°C, que encharcavam completamente a camisa e drenavam muito mais as energias.

Leitura do termômetro no Mineral Canyon
Leitura do termômetro no Mineral Canyon

Às 15:50 já havíamos deixado o Mineral Canyon e avançávamos para dentro do Hance Canyon, nosso destino naquele dia. Andando novamente às margens desse grande cânion, apreciávamos mais uma vez como o Grand Canyon abriga mundos à parte. Às 15:00 começamos a avistar, à distância, um traçado escuro característico no fundo do cânion. Logo em seguida, percebemos o reflexo da luz sobre o que seria o tímido Hance Creek. No dia anterior, havíamos cruzado com um grupo que passara a noite naquele córrego. Então, àquela altura, já não tínhamos preocupações com a água para nosso acampamento. De qualquer forma, a existência da água ali foi uma preocupação durante o planejamento da nossa travessia. Então, ver a água brilhando lá embaixo, não deixava de nos causar uma sensação de alívio e satisfação.

Continuamos avançando pela borda do cânion e, agora, enxergamos lá em baixo um outro grupo acampado. Achamos que já estaríamos bem próximos do ponto de acesso ao córrego, mas a caminhada pela borda ainda levou algum tempo. Finalmente, às 16:45, e com 12 Km percorridos, a trilha chegou ao leito pedregoso do rio. Inicialmente, não vimos a água correndo. Já tínhamos sido alertados sobre essa curiosidade. A água, na verdade, brota da terra, uma centena de metros leito abaixo. Fomos seguindo o fio d'água até ele ganhar um pouco mais de volume, e cair entre algumas pedras que facilitassem a coleta. Já havíamos decidido montar acampamento poucos metros antes do ponto onde a trilha cortava o leito seco, então levamos nossas garrafas e o balde retrátil (que finalmente foi inaugurado ali) para buscar a água que utilizaríamos durante o resto do dia e da noite. Sequer conseguíamos ver o outro grupo que avistamos do topo do cânion. Eles estavam acampados algumas centenas de metros a jusante.

Acampamento próximo à Hance Spring
Acampamento próximo à Hance Spring

Montamos acampamento. Às 18:00 a temperatura já havia caído para 17°C. Começamos a ouvir um barulho familiar na vegetação à nossa volta. Nossa pequena área de acampamento era cercada de pequenas moitas e árvores baixas, através das quais, mais uma vez, os ratos corriam de um lado para o outro. Felizmente, após a Cardenas Beach, não nos deparamos com uma população tão habituada a humanos. Apesar de terem nos exigido cuidado especial com os alimentos, não eram ousados a ponto de nos confrontar abertamente por uma embalagem de comida. Tomamos as medidas preventivas que adotamos anteriormente, e não tivemos maiores problemas durante a madrugada. Ainda assim, precisei levantar algumas vezes para me certificar de que o barulho que faziam não indicava que estavam passando dos limites. Mas de forma geral, tivemos uma noite muito melhor do que na Cardenas Beach.

05/10) Hance Spring → Grand View Point

Caminhando na borda do Hance Canyon ao amanhecer. O sol começa a iluminar as formações do North Rim. Em destaque, o Vishnu Temple.
Caminhando na borda do Hance Canyon ao amanhecer. O sol começa a iluminar as formações do North Rim. Em destaque, o Vishnu Temple.
Foto: Patrícia Carvalho

Com o aumento da temperatura que observamos nos últimos dias, decidimos que, no nosso último dia de travessia, seríamos mais observantes ao protocolo do deserto. Levantaríamos mais cedo para garantir o maior avanço possível ainda nas primeiras horas do dia. Acordamos às 4 horas, com temperatura em torno dos 11°C. Deixamos o acampamento às 06:10, agora percorrendo a borda oposta do Hance Canyon. Do alto, mais uma vez avistamos o outro grupo acampado lá no fundo do cânion. Sequer devem ter notado nossa presença por ali. Às 6:30, alcançamos um ponto onde deixamos o braço do cânion onde acampamos e entramos num outro braço mais à oeste, que segue em direção à Page Spring. A trilha vai ganhando altitude de forma constante, enquanto avança rumo a um paredão de pedras no final do cânion. À distância, parece que a trilha não teria como vencer aquela muralha.

Visão a partir do interior da Last Chance Mine, na subida do Hance Canyon
Visão a partir do interior da Last Chance Mine, na subida do Hance Canyon

Bem na base da parede, encontramos a placa indicando o acesso para a Page Spring. O Parque não recomenda o consumo dessa água por contaminação por arsênio. De fato, naquela área funcionava uma mina de cobre. Ao longo do caminho notamos diversas pedras com tonalidade esverdeada, que parecem ser malaquita, um minério de cobre. A trilha vai serpenteando pela íngreme parede, em alguns pontos é bem estreita, mas em nenhum momento se compara aos trechos mais técnicos que havíamos vencido até ali. Em certo momento, encontramos a entrada da Last Chance Mine, desativada em 1901, bem conservada e com algumas ferramentas ainda expostas ali. Fizemos uma breve visita, limitada por uma grade de metal, instalada em 2009 para proteger a população de morcegos do local. A medida que ganhamos altitude, vamos também ganhando uma bela vista do braço do cânion de onde viemos.

Subindo a parede ao final do braço oeste do Hance Canyon em direção à Horseshoe Mesa
Subindo a parede ao final do braço oeste do Hance Canyon em direção à Horseshoe Mesa

Às 8:40, chegamos ao topo da Horseshoe Mesa. A temperatura havia subido para 25°C. Com o sol ainda baixo, havíamos conseguimos vencer os 400 metros de subida até ali bem protegidos pela sombra das paredes do cânion. Chegando ao topo da Horseshoe Mesa, encontramos mais uma entrada de mina que não exploramos mais de perto. Existem placas que alertam sobre radioatividade no local, aparentemente, relacionada às antigas atividades de mineração. Justamente nesse ponto, perdemos a trilha por algumas dezenas de metros, nos obrigando a circular um pouco mais na ingrata área. Desse ponto em diante, continuamos nossa subida, agora na Grand View Trail. Ela avança pela lateral do cânion que abriga o Cottonwood Creek e, gradativamente, vamos ganhando um belo visual aéreo da Horseshoe Mesa.

Subindo a Grand View Trail
Subindo a Grand View Trail

Eram 11:20 quando alcançamos a Coconino Saddle. A relativa proximidade da borda do Grand Canyon nos dá a falsa impressão de que estamos perto do final. Ainda tínhamos cerca de 370 metros de altitude para vencer. A trilha ali era calçada com pedras, a primeira trilha bem estruturada desde o início da nossa travessia. Foi um trabalho realizado para facilitar a passagem das mulas que escoavam a produção na época da mineração. Nesse ponto, começamos a notar o gradual aumento da movimentação de pessoas pela trilha. Muitos sem equipamento, vindos da borda do cânion para um passeio de um dia. Cruzamos também com uma tarântula negra, um dos poucos animais típicos da região que tivemos a sorte de encontrar durante nossa travessia. A parede do cânion nos protegia do sol, e a temperatura seguia bastante tolerável, em torno dos 26°C. Curiosamente, era possível avistar a torre do Desert View point, agora um minúsculo ponto a quilômetros dali.

Tarântula negra atravessa a Grand View Trail
Tarântula negra atravessa a Grand View Trail

Às 13:00 emergíamos do interior do Grand Canyon, no Grand View Point. Estávamos muito felizes com nossa realização. Nos metros finais de nossa subida, visitantes curiosos nos observavam chegando com nossas mochilas enormes e roupas sujas. Alguns nos perguntavam sobre nosso roteiro, e até nos parabenizavam pelo feito. Ainda tínhamos um missão: Retornar ao nosso carro. Dentre os curiosos, um casal de turistas havia puxado assunto conosco. No meio da conversa descobrimos que eram israelenses, e uma amistosa conversa em hebraico se sucedeu com uma de nossas amigas. Não perdemos a oportunidade de perguntar se por acaso não estariam indo em direção ao Lipan Point. O casal não estava indo para lá, mas muito gentilmente, se ofereceu para, mesmo assim, nos ajudar a recuperar o carro.

Visual uma hora antes do final da Grand View Trail. À esquerda, o cânion do Grapevine Creek.
Visual uma hora antes do final da Grand View Trail. À esquerda, o cânion do Grapevine Creek.

Peguei carona com eles e, em 20 minutos, estava de volta ao ponto de início da nossa travessia. Entrei no carro que, àquela altura, fervia exposto ao sol no estacionamento do mirante. Mais vinte minutos de volta ao Grand View Point e o resto dos integrantes de nossa pequena equipe vitoriosa estava de novo na estrada, à caminho do Mather Campground. Retornamos ao mesmo campsite, que estava reservado para nosso grupo para todo o período de estadia no parque. No restante do dia, fomos tomar um merecido banho, lavamos roupas na lavanderia próxima ao acampamento e jantamos na cafeteria do Maswik Lodge, na Canyon Village. Fomos dormir às 20:40, sem preocupações com ratos ou obstáculos a serem vencidos no próximo dia de caminhada. Faziam 10°C. Como esperado, mais frio do que no interior do cânion, porém um pouco mais quente do que no dia em que chegamos ao parque.

Pós travessia

06/10) Hermit Road, Yavapai & Desert View Point

Visual do Grand Canyon a partir do Hermit's Rest
Visual do Grand Canyon a partir do Hermit's Rest

Tivemos uma boa noite de descanso no Mather Campground após a Escalante Route. Acordamos às 6:00, com a temperatura de 10°C. Ao longo dia, teríamos temperaturas em torno dos 20°C, com tempo totalmente aberto. Nos planejamos para, após a travessia, conhecer os pontos turísticos da parte mais estruturada do parque. Fizemos nosso café da manhã no acampamento e seguimos de carro para a Grand Canyon Village. Lá, iríamos embarcar no ônibus interno do Parque para conhecer os mirantes na borda do sul do cânion, ao longo da Hermit Road.

Entretanto, precisaríamos primeiramente conseguir estacionar o carro. Nos deparamos com cenário semelhante ao dia da nossa chegada: Visitantes por todos os lados, estacionamentos lotados. Lembramos que o Parque recomenda usar o ônibus interno para os deslocamentos pela Canyon Village, e por bom motivo. Acabamos gastando um tempo extra, tanto a procura de uma vaga distante, quanto na caminhada até o ponto de embarque no ônibus, no início da Hermit Road. Chegando lá, ainda esperamos alguns minutos na fila para embarcar.

Ônibus do Parque, parado no ponto do Hermit's Rest
Ônibus do Parque, parado no ponto do Hermit's Rest

O ônibus segue pela Hermit Road na direção oeste, parando nos mirantes na borda do cânion, até o ponto final no Hermit's Rest. Depois, retorna pela mesma estrada, porém não faz paradas em todos os mirantes. Na ida, nós descemos na maioria das paradas: Maricopa Point, Hopi Point, The Abyss e o Hermit's Rest. Gastamos cerca de 3 horas nesse trecho, incluindo as paradas. No retorno, preferimos dispensar paradas extras e descer apenas na Canyon Village. O mirantes são muito bonitos, afinal, a vista do cânion é fascinante. Porém, não existem diferenças substanciais de visual entre os pontos de paradas, em especial nos pontos adjacentes.

Visual do Grand Canyon a partir do Yavapai Museum
Visual do Grand Canyon a partir do Yavapai Museum

No dia em que chegamos ao parque, observamos um pequeno centro urbano 10 Km antes da portaria sul. Trata-se do entorno de um pequeno aeroporto regional. Resolvemos explorar a área, e almoçamos por lá, num fast food simples chamado Foodie Club. Depois, retornamos ao parque. Seguimos para a visitação do Yavapai Point, também na borda do cânion, e relativamente próximo da Canyon Village. Lá encontra-se o Yavapai Geology Museum. Esse museu foi a atração que achamos mais interessante do ponto de vista educativo. Possui ótimas maquetes da área do parque, e excelentes painéis informativos sobre o processo de formação das rochas da região, e do Grand Canyon propriamente. Além disso, ainda conta com uma deslumbrante parede de vidro, com vista privilegiada para o cânion. Daquele ponto, inclusive, é possível ver uma das duas pontes suspensas que cruzam o Rio Colorado no fundo do cânion, minúscula, quando avistada dali.

A torre de observação do Desert View Point
A torre de observação do Desert View Point

Após a visitação ao museu, ainda dirigimos até o Desert View Point. Estávamos curiosos para conhecer a torre de observação que admiramos à distância enquanto fazíamos a travessia. Passamos novamente pela entrada do Grand View Point e, pouco após o Lipan Point, entramos no acesso ao Desert View Point. Chegando ao local, descobrimos que seria possível subir na torre mas, além de existir uma fila, havia passado por pouco o horário de encerramento da visitação: 17:00. Apesar de termos perdido a subida na torre, chegamos a tempo para acompanhar o pôr do sol do local. Ao contrário dos mirantes da Hermit Road, cujo visual achamos bastante semelhante entre si, ali no Desert View Point encontramos uma vista sensivelmente diferente. O panorama do cânion é mais aberto, permitindo uma vista mais contínua do rio e, no topo, avistamos formações muito interessantes. Pra completar, o sol poente garantiu uma iluminação diferenciada para a paisagem.

Acompanhando o pôr do sol no Desert View Point
Acompanhando o pôr do sol no Desert View Point

Retornamos ao Mather Campground para o banho e jantar. Planejamos naquela noite aproveitar mais a área de acampamento. Ao invés de jantar em algum restaurante, iríamos preparar nossa refeição lá mesmo, com alguns ingredientes que havíamos comprado em Las Vegas para esse momento. Nossa reserva para o Mather Campground nos permita 7 dias no parque, o número máximo de dias consecutivos permitidos. Com isso, ainda poderíamos aproveitar mais um dia inteiro no Grand Canyon.

Nosso plano inicial para o último dia seria realizar a South Kaibab Trail (ou parte dela) em bate-e-volta. Porém, durante os estudos da rota entre o Grand Canyon e o próximo parque que iríamos visitar, o Capitol Reef, percebemos que existiam diversos pontos de interesse no percurso. Decidimos então dividir esse deslocamento em dois dias de viagem. Para acomodar essa viagem mais demorada, precisaríamos eliminar, ou um dia da estadia no Grand Canyon, ou um dia da estadia no Capitol Reef. Julgamos que, àquela altura, já tínhamos aproveitado bastante do Grand Canyon. A South Kaibab seria mais uma trilha exigente, de descida para o interior do cânion. Seria melhor reservar as energias do grupo para explorar o Capitol Reef.

07/10) Visitor Center & Desert View Point

Visita dos cervos no acampamento antes da nossa partida
Visita dos cervos no acampamento antes da nossa partida

Na nossa última manhã, antes de pegar a estrada, ainda fizemos uma breve visita ao Visitor Center do Grand Canyon. Havíamos tentado visitá-lo anteriormente, mas havíamos chegado depois do horário de fechamento (16:00). Ficamos decepcionados com a visita. Tínhamos visto centros de visitantes bem mais interessantes em outros parques americanos, até menos famosos que o Grand Canyon. Parece que todas as informações mais relevantes ficaram concentradas no Yavapai Geology Museum. Assistimos o filme de 20 minutos sobre o parque na sala de exibição do centro e começamos a nos despedir do parque, tomando mais uma vez a Desert View Drive em direção à portaria leste. Não resistimos a uma última parada no Desert View Point. Havíamos gostado muito do visual dali e queríamos ter a oportunidade de uma última olhada para o cânion.

Entrada do Grand Canyon Visitor Center
Entrada do Grand Canyon Visitor Center

Deixei o parque extremamente satisfeito com a visitação que fizemos. Conseguimos ter uma visão bastante abrangente da parte sul do parque e vivemos experiências muito marcantes no interior do cânion. Apesar de todo o desgaste físico, saímos de lá com uma forte indicação de que a visita tinha sido muito positiva: Estávamos já falando sobre quando voltar para fazer a travessia rim-to-rim. Nossa visita ao Grand Canyon se encerrava, mas nossa viagem aos EUA ainda prosseguiria para o Capitol Reef National Park, Bryce Canyon National Park e Red Rock Canyon National Conservation Area.

Resumo dos dados da travessia

Na tabela abaixo reuni os principais dados sobre a Escalante Route. Esses números também podem ser obtidos do GPX com o tracklog da travessia. Fora o GPS, utilizamos nos planejamentos e na execução da travessia o mapa da National Geographic do Grand Canyon, e as cartas da USGS, formatadas para impressão através do site Caltopo.

DataDetalheDistânciaTempoAlt.(min - max)G.E.AP.E.A
02/10Lipan Point x Cardenas Beach16,72 Km10:01796 m - 2249 m455 m1905 m
03/10Cardenas Beach x Papago Beach13,30 Km9:22784 m - 1187 m821 m858 m
04/10Papago Beach x Hance Spring11,55 Km8:21769 m - 1182 m656 m341 m
05/10Hance Spring x Grand View Point7,31 Km6:421020 m - 2388 m1421 m53 m
TOTAL48,87 Km34:26769 m - 2388 m3353 m3157 m
Alt.(min - max) = Altitudes mínima e máxima do trecho
G.E.A. = Ganho de elevação acumulado
P.E.A. = Perda de elevação acumulada
Por: Ângelo Vimeney
Publicado em: 27/11/2023
Última atualização: 12/02/2024

Comentários


QUE VIAGEM ESTRAORDINARIA ! NEM SABIA QUE O GRAND CANION ERA LUGAR DE VISITAÇÃO.( DESCULPE A IGNORANCIA ) SEI DE SUA EXISTENCIA PELOS FILMES, ONDE SEMPRE APARECE COMO UM LUGAR DE PASSAGEM, DE BELEZA EVIDENTE, MAS DE PASSAGEM. NO ENREDO SEMPRE A NECESSIDADE DE VENCER A SUA ARIDEZ E CHEGAR A ALGUM PONTO DE SOBREVIVENCIA. ESSE MATERIAL ME TROUXE UM NOVO OLHAR SOBRE REGIÃO. FOTOS DE TIRAR O FOLEGO ( SENTI FALTA DE FOTOS DE MAIOR PROXIMIDADE ) TEXTO FLUIDO E MUITO INSTIGANTE. NOS DEIXA PERCEBER UM DESEJO INCONTIDO DE EXPLORAR O LUGAR.
Olá Edson! Que bom que gostou do texto e descobriu com ele um pouco mais sobre esse lugar incrível!! Te agradeço pelo empenho na recuperação do meu ombro ao longo dos últimos meses. Sem dúvida sua ajuda também foi fundamental para que eu conseguisse realizar esse sonho. Grande abraço!

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