Travessia Guiné x Campo Alegre
Parque Nacional da Chapada Diamantina, BA
6 dias - mai/2019

Parte II

30/05) Mucugê até "Acampamento Areal"

Visual a partir da estrada de terra rumo à Cachoeira da Matinha. No horizonte já é visível o vale que percorreríamos nos próximos dias.
Visual a partir da estrada de terra rumo à Cachoeira da Matinha. No horizonte já é visível o vale que percorreríamos nos próximos dias.

O dia acordou chuvoso, dificultando a desmontagem do acampamento. Nos despedimos dos amigos que fizemos no Camping Mucugê e às 8:15 retomamos nossa caminhada rumo à Ibicoara. Saindo de Mucugê, tomamos a mesma estrada de terra que havíamos usado no dia anterior para visitar as cachoeiras da Andorinha e do Funil. Inicialmente, a estrada é de barro, em estado de conservação razoável. Ao longo do percurso, vai se degradando e se transforma em uma estrada de areia bem estreita e precária. Nos seus últimos quilômetros até alcançar a Cachoeira da Matinha, se torna uma trilha trafegável apenas a pé ou de moto.

A Cachoeira da Matinha, a propósito, é uma bela cachoeira "em prateleiras" de diferentes alturas. Em cada prateleira, encontra-se um belo poço e uma queda para o andar inferior. São pelo menos 4 andares. A trilha nos levou ao poço inferior, e uma trilha secundária nos permitiu alcançar os andares superiores onde o visual é ainda mais bonito. O tempo estava fechado, havíamos inclusive colocado a capa de chuva nas mochilas para uma pancada de chuva fina de alguns minutos na estrada de terra. Não nos animamos para tomar banho.

Chegada na Cachoeira da Matinha
Chegada na Cachoeira da Matinha

Saindo da Cachoeira da Matinha, retomamos a trilha de areia por mais 1,8 Km. Impressas na areia por boa extensão da trilha, identificamos pegadas que, ao que tudo indica, eram de uma onça parda. A trilha finalmente termina na margem do rio Mucugê, em uma região de confluência de dois de seus afluentes. Deste ponto até o alto da cela, ponto divisor de águas das bacias do Mucugê e do Riachão das Pedras, não tínhamos informação de nenhum ponto para abastecimento de água, fora o próprio rio Mucugê. Porém, não sabíamos exatamente a que distância o Mucugê estaria de nós durante o percurso, nem como seria o terreno até a sua margem. Por isso, naquele momento enchemos todos os nossos reservatórios de água. Queríamos estar abastecidos até a metade do dia seguinte, quando alcançaríamos o alto da cela.

Visual a partir do segundo andar da Cachoeira da Matinha
Visual a partir do segundo andar da Cachoeira da Matinha

Abastecidos de água, começamos a tentar vencer o terreno. Inicialmente, arriscamos atravessar o Mucugê pelas pedras e seguir pela sua margem esquerda. Conseguimos avançar por uns 300 metros, até sermos encurralados pelos alagados formados pelo Mucugê e seu afluente do oeste. Retornamos o trecho e tentamos seguir pela sua margem direita, onde identificamos uma trilha abandonada, paralela ao rio. Essa trilha começou transitável, porém 300 metros à frente, se fechou. Nesse ponto, um rastro de trilha abandonada apontava em direção aos alagados. Durante quase meia hora, tentamos de alguma uma forma atravessá-lo. Porém, a vegetação extremamente fechada e grandes poços de água escura insistiam em bloquear nosso caminho.

Algumas das pegadas que identificamos no entorno da Matinha
Algumas das pegadas que identificamos no entorno da Matinha

Convencidos de que se afundar naqueles charcos não seria a melhor opção, retornamos ao ponto onde a trilha se fechara para forçar nossa passagem. Com paciência, conseguimos ir atravessando a vegetação, porém notávamos que, pouco a pouco, íamos nos desviando para longe da nossa direção de original de navegação. Tínhamos que conseguir cruzar o charco, mais cedo ou mais tarde. Duzentos metros à frente, notamos que seria possível cruzá-lo parcialmente, por um trecho de terreno seco. Aí alcançamos um banco de areia onde encontramos mais algumas pegadas da sussuarana! Avançamos mais 200 metros pelo banco e, lançando duas pedras dentro de uma língua d'água, improvisamos uma ponte para em fim chegar a um trecho de terreno firme, mais promissor.

Esse local era a base de uma espécie de morrote, com uns 15 metros de altura. Nos dirigimos para a sua crista onde conseguimos entender de forma clara nossa situação: O afluente leste do Mucugê vinha bloqueando nosso percurso e nos afastando do nosso rumo: o sul. Ali de cima, percebemos que finalmente havíamos conseguido cruzá-lo e enxergamos claramente o curso do Mucugê seguindo à nossa direita. Com nossa posição no terreno confirmada e a nosso referencial de direção visível, respiramos mais aliviados e consideramos vencido o primeiro grande desafio do dia. Foram 2 horas e 20 minutos de briga. Mas nossa perspectiva para os próximos quilômetros não era boa. Estávamos novamente bem em cima do tracklog de referência, porém no terreno não havia qualquer sinal de presença de uma trilha. Precisaríamos continuar negociando nossa passagem com a vegetação à frente.

Limpeza da área de acampamento "Areal"
Limpeza da área de acampamento "Areal"

Caminhamos por mais uma hora rumo ao sul, e conseguimos percorrer apenas 1,4 Km. Ali, havíamos alcançado um local que durante os estudos do roteiro, havia sido eleito como um potencial ponto de acampamento. Seria o local mais próximo o possível do leito do Mucugê, bem nivelado, e localizado 2 Km antes da metade do caminho até a Toca do Vaqueiro. Devido ao bom ritmo de caminhada na estrada no início do dia, ainda eram 15:30. Sabendo que não havíamos chegado nem à metade de um trecho que se mostrou nada trivial de ser percorrido, o impulso de continuar caminhando era grande. Mas sabíamos que após esse ponto, o trajeto começaria a se afastar do rio e subir a encosta rumo à cela. Por sorte, naquele local a vegetação estava esparsa, formando um pequeno areal. Preferimos garantir a posição privilegiada e arcar com a quilometragem adicional no dia seguinte.

Gastamos alguns minutos limpando o terreno e conseguimos ótimas posições para a montagem das barracas. Ficamos animados com o espaço e desanimados com o acesso ao rio. Apesar do Mucugê estar apenas a 200 metros dali, o terreno até lá era de vegetação de altura intermediária, densa e seu canal bastante afundado no terreno. A ideia de ir até lá buscar água não era nada atraente. Enquanto parte do grupo limpava o terreno, outra parte investigava o caminho mais à diante, na busca de sinais de alguma trilha a ser seguida no dia seguinte. Havíamos notado sinais de trilha 100 metros antes do acampamento. Encontramos um ou outra pegada de cavalo 80 metros adiante, e mais nada. O dia seguinte prometia ser trabalhoso.

Visual do leito do Mucugê e montanhas ao oeste, a partir do "Acampamento Areal"
Visual do leito do Mucugê e montanhas ao oeste, a partir do "Acampamento Areal"

Tão logo finalizamos a montagem das barracas, veio a chuva. Nos escondemos e descansamos um pouco esperando a oportunidade de sair para preparar o jantar. Aproveitamos para deixar as panelas coletando a água que escorria pelo sobreteto das barracas. Coletamos 300 mL que foram muito bem vindos para o preparo da refeição. Até porque, durante a luta contra o terreno e contra a vegetação, acabamos perdendo uma garrafa de 500 mL. A chuva não se estendeu por muito tempo. Logo estávamos do lado de fora, preparando nosso jantar imersos na escuridão daquele ponto isolado no meio da Chapada.

Ao final da tarde, os mosquitos estavam particularmente chatos, insistindo em invadir as barracas. Para contrabalancear, nos divertimos com os inúmeros vaga-lumes que nos rodeavam, e até andavam sobre nós. A Chapada Diamantina é um bom lugar para se apreciar estes insetos. Nessa noite a espécie que se apresentou foi aquela em que existem duas "lanterninhas" minúsculas nas costas do bicho, como se fossem dois olhinhos iluminados. Fomos dormir felizes por estar num local tão especial e, ao mesmo tempo, apreensivos com o dia seguinte.

31/05) "Acampamento Areal" até Toca do Vaqueiro

Visual sul ao amanhecer no "Acampamento Areal". Nosso destino são as montanhas que aparecem no horizonte, ao centro da foto.
Visual sul ao amanhecer no "Acampamento Areal". Nosso destino são as montanhas que aparecem no horizonte, ao centro da foto.

Antes das 5 da manhã estávamos acordando. Nosso plano era começar a caminhar cedo para aproveitar ao máximo a claridade. Quando saí da barraca ainda era penumbra e o céu estava bem encoberto. Apesar disso, a Lua se destacava entre as nuvens, próxima ao horizonte, com uma pequena borda inferior muito iluminada, indicando o leste. Em uma garrafa coletamos 300 mL de sereno acumulado do sobreteto das barracas para qualquer emergência.

Pouco antes das 7 começávamos a andar. Nossa estratégia seria alcançar alguma fonte de água até às 11 horas e alcançar o topo da cela até o meio dia. Caso contrário, abortaríamos a expedição e retornaríamos para o mesmo ponto de pernoite, onde teríamos que dar um jeito de chegar até o Rio Mucugê para coletar água. Caso o plano de emergência fosse adotado, teríamos o dia seguinte para voltar a Mucugê e improvisar um transporte para Ibicoara.

Um dos totens de sinalização esquecidos pelo tempo na trilha para a Cela
Um dos totens de sinalização esquecidos pelo tempo na trilha para a Cela

Andamos com certa facilidade pelos 80 metros até as pegadas de cavalo identificadas no dia anterior. Logo após, o cerrado se impôs à nossa frente e nos vimos mais uma vez negociando a passagem com a vegetação. A chuva e o sereno da madrugada ainda cobriam o mato, o que garantiu botas e calças encharcadas logo nos primeiros minutos de batalha. Em meia hora, havíamos percorrido 700 metros, e nos deparamos com um totem rústico de sinalização. Com uma hora de caminhada e 1,5 Km de percurso, chegamos a um minúsculo córrego. Parte do nosso problema tinha sido amenizado. Aproveitamos para nos hidratar e reabastecer todos os nossos reservatórios.

Montanhas ao oeste, no vale do Mucugê. Bem ao centro é possível notar a fenda onde se encontra a nascente do Mucugê. No terreno à sua frente, o leito do rio segue serpenteando.
Montanhas ao oeste, no vale do Mucugê. Bem ao centro é possível notar a fenda onde se encontra a nascente do Mucugê. No terreno à sua frente, o leito do rio segue serpenteando.

Aos poucos notamos que era hora de se afastar mais do leito do rio, ganhando altitude em direção à cela e evitando uma protuberância da parede da montanha que surgia à nossa frente. Tão logo nos desviamos mais à esquerda, os afloramentos rochosos começaram a se tornar mais frequentes e mais extensos. Com eles, surgiram diversos totens de sinalização de uma antiga trilha. Naturalmente, os antigos frequentadores deste caminho optaram pelo uso dos totens nessa parte rochosa, onde a trilha poderia ser facilmente perdida. Para nós foi um grande alívio. Primeiro pelo fato da rocha exposta facilitar nossa caminhada, depois pelo fato dos totens facilitarem a navegação. Identificamos 15 deles num trecho de 700 metros. Alcançamos um platô com belo visual do vale do Mucugê. Ali estávamos bem na direção da nascente do Mucugê: Uma bela fenda na parede oposta do vale, de onde o rio surgia serpenteando em direção ao meio do vale!

Nosso principal referencial dentro do vale do Mucugê era a "montanha bicuca" na, suposta, Serra da Tesoura.
Nosso principal referencial dentro do vale do Mucugê era a "montanha bicuca" na, suposta, Serra da Tesoura.

A propósito, o visual de toda a caminhada dentro do vale é muito bonito. À nossa frente conseguíamos avistar as montanhas vizinhas à cela, dentre elas uma com um bico pontudo apontado para a esquerda, que era um excelente referencial. Para trás, avistávamos as montanhas das imediações de Mucugê, se distanciando cada vez mais no horizonte. Os totens foram diminuindo a medida que avançávamos para a parte superior da cela e os afloramentos rochosos voltavam a dar lugar para vegetação fechada. Já começávamos a considerar a cela vencida e nos imaginar atravessando as Gerais do Machambongo. Lá, com a vegetação rasteira característica, prevíamos um progresso muito mais rápido.

Nessa imagem apontada para o noroeste, vemos as montanhas que vamos deixando para trás conforme nos afastamos de Mucugê. Na planície no centro da foto, corre o Rio Mucugê.
Nessa imagem apontada para o noroeste, vemos as montanhas que vamos deixando para trás conforme nos afastamos de Mucugê. Na planície no centro da foto, corre o Rio Mucugê.

Alcançamos um alagado, desviamos pela sua direita e nos deparamos com outro minúsculo curso d'água. Aproveitamos para novamente nos hidratar. Com ajuda de um filtro de pano retiramos as folhas e pequenos gravetos que se acumulavam na água que, muito lentamente, por ali escoava. Adentramos uma mata densa de samambaias que nos cobria acima da altura do peito. Às 10:20 estávamos vencendo os últimos metros até o topo da cela e início das gerais. Olhamos para trás e nos despedimos do vale do Rio Mucugê e suas montanhas. Ali já não cogitávamos a possibilidade de retornar. Queríamos alcançar a Toca do Vaqueiro ainda nesse dia. Nossa motivação era pensar na água abundante para acampar e o banho de rio bem ao lado da Toca.

Vencendo a mata de samambaias no trecho final rumo ao topo da cela
Vencendo a mata de samambaias no trecho final rumo ao topo da cela
Foto: Patrícia Carvalho

A expectativa de progresso mais rápido nas Gerais do Machambongo foi logo frustrada. Apesar da vegetação característica das gerais ser bem rasteira, ainda era densa o suficiente para nos impedir de enxergar o chão e conter nosso avanço. O jeito era manter a calma e continuar ganhando terreno gradativamente. Estávamos agora passando à esquerda da "montanha com o bico para a esquerda" (parte da suposta Serra da Tesoura). Ela agora já tomara uma feição diferente e não era mais possível visualizar sua protuberância característica. Às 10:50 cruzamos um pequeno córrego, afluente do Riachão das Pedras. Caminhávamos mantendo a Serra da Tesoura à nossa direita, seguindo sempre ao sul por campos que se perdiam de vista no horizonte. Às 11:20, cruzamos o próprio Riachão das Pedras, passando para sua margem direita. A travessia foi facilitada por um amontoado de pedras que, felizmente, identificamos rapidamente.

Cruzando o Riachão das Pedras, ainda bem próximo da sua nascente, pouco depois de ultrapassarmos o topo da cela
Cruzando o Riachão das Pedras, ainda bem próximo da sua nascente, pouco depois de ultrapassarmos o topo da cela
Foto: Patrícia Carvalho

O Riachão das Pedras corta as Gerais do Machambongo seguindo no sentido norte para o sul, e ao longo do seu curso, vai ganhando volume por conta dos pequenos afluentes encontrados em ambas suas margens. Ele é um dos principais referencias para navegação naquela área, passando inclusive na Toca do Vaqueiro, nosso destino nesse dia. Após a Toca do Vaqueiro, ele continua seguindo para o sul, até formar a Cachoeira da Fumacinha e se juntar ao Rio Una, no Baixão.

A tarde chegou e o sol começou a nos castigar. Faziam 28°C. Eventualmente, cruzávamos pequenos cursos d'água mas não havia uma só árvore para nos abrigar. Aos poucos, começava a despontar no horizonte, bem à nossa frente, a Serra do Sincorá. Primeiramente, apenas a parte superior de um cume, supostamente o Pico da Batávia. A medida que avançávamos, sempre na seguindo em direção a esse cume, a cadeia de montanhas ia se revelando no horizonte. Em torno das 14:20, surgia mais à nossa esquerda o topo do Pico do Gavião, outro ótimo referencial. A trilha agora seguia sempre na sua direção.

O Pico do Gavião (à esquerda) começa a se aproximar no horizonte enquanto avançamos nas Gerais do Machambongo
O Pico do Gavião (à esquerda) começa a se aproximar no horizonte enquanto avançamos nas Gerais do Machambongo

Às 15:00 começamos a encontrar uma série de totens, que nos conduziram ao melhor ponto para atravessar mais um afluente do Riachão das Pedras, nas imediações do que seria a antiga Fazenda Ibicoara. Mais 600 metros e mais alguns totens, finalmente nos encontramos com uma trilha que leva das imediações do povoado de Campo Alegre para a Toca do Vaqueiro. Eram 15:20. Desde a Cachoeira da Matinha no dia anterior, era a primeira trilha que encontrávamos. Descansamos um pouco e seguimos animados pelos 700 metros restantes para a Toca do Vaqueiro. Finalmente conseguimos caminhar num ritmo razoável. Talvez pela primeira vez tivemos certeza de que atingiríamos o destino daquele dia. Até então, quanto mais avançávamos pelas gerais, mais mato surgia em nossa frente, como se não houvesse fim. Chegamos na Toca às 15:40, após quase 9 horas de caminhada.

A Toca do Vaqueiro
A Toca do Vaqueiro

As pegadas e a quantidade de cocô de cavalo que encontramos no trecho final da caminhada já era um indicativo de que a Toca do Vaqueiro era uma lugar movimentado. Chegando lá, encontramos ainda mais cocô de cavalo, pichações, latas e lixo em geral abandonado em várias pontos. Apesar desses sinais, não encontramos ninguém no local. A Toca do Vaqueiro em si possui paredes de pedras e até uma porta de madeira, certamente estrutura herdada da época do garimpo. Lá dentro é escuro, úmido e sujo. Colchões velhos e outros itens empoeirados estavam abandonados lá dentro. Conforme prevíamos, definitivamente não era um local convidativo para o pernoite. Começamos a buscar bons pontos para a montagem das barracas.

Final de tarde no Riachão das Pedras, na altura da Toca do Vaqueiro
Final de tarde no Riachão das Pedras, na altura da Toca do Vaqueiro

A toca fica numa parte sobrelevada do terreno. Logo abaixo, observa-se o Riachão das Pedras com margens avantajadas. Já estávamos nos imaginando com o acampamento montado, tomando banho de rio no resto de sol da tarde. O processo de montagem das barracas no entanto foi mais demorado do que gostaríamos. A maior parte da área consiste de rocha irregular exposta ou solo muito raso. Buscamos bons pontos para as barracas em ambas as margens sem sucesso. A tarefa foi particularmente dificultada pela grande quantidade de cocô de cavalo espalhado pelo terreno. Acabamos nos contentando com um espaço na margem direita do rio onde fixamos as barracas com ajuda de algumas pedras auxiliares.

Acampamento às margens do Riachão das Pedras, na altura da Toca do Vaqueiro
Acampamento às margens do Riachão das Pedras, na altura da Toca do Vaqueiro

O leito do rio ali é largo, suficientemente fundo para dificultar a travessia de botas e suficientemente raso para dificultar o banho. Ainda estava claro quando finalmente conseguimos nos refrescar nas suas águas, mas o sol já havia baixado atrás das árvores. Jantamos e fomos dormir com temperatura em torno dos 18°C. Devido as diferenças de paisagens e todas as emoções que passamos, a sensação era de que o dia teve 48 horas. Por outro lado, tínhamos o sentimento de que havíamos vencido um desafio e no dia seguinte teríamos tranquilidade. Deixaríamos a Toca pela mesma trilha que chegamos. Passaríamos pela bifurcação para a Fazenda Ibicoara e depois retomaríamos a direção sul continuando a atravessar as gerais até a Fumacinha. Sendo a Toca e a Fumacinha dois pontos bastante frequentados, imaginávamos que a ligação entre estes dois pontos seria feita por uma trilha tão boa quanto a que nos conduziu nos últimos metros até a Toca.

01/06) Toca do Vaqueiro → Campo Alegre + Buracão

Novamente o Riachão das Pedras, agora, prestes a formar a Cachoeira da Fumacinha
Novamente o Riachão das Pedras, agora, prestes a formar a Cachoeira da Fumacinha

Antes das 05:00 estávamos acordando para tomar café e desmontar nosso acampamento, pela última vez na travessia. Faziam 15°C. Precisávamos partir cedo para conseguir visitar a Fumacinha e ainda finalizar a travessia em tempo de ir ao Buracão. Às 7:05 estávamos partindo da Toca do Vaqueiro. Retomamos a trilha por onde chegamos e nos mantivemos atentos a bifurcação que deveria aparecer à esquerda, nos levando para Fumacinha. Quase 1 Km após a bifurcação para a Fazenda Ibicoara, percebemos que a suposta bifurcação já deveria ter passado há algum tempo. Retornamos o trecho atentos a qualquer entrada que pudéssemos ter deixado escapar. Porém, não demorou para que nos convencêssemos de que, mais uma vez, não haveria trilha para nos ajudar.

A primeira queda da Fumacinha
A primeira queda da Fumacinha

O grupo visivelmente frustrado se pôs a cortar as gerais rumo ao sul. Nosso principal referencial: o Pico do Gavião, cada vez mais saliente no horizonte. Do ponto em que deixamos a trilha Campo Alegre x Toca do Vaqueiro até o ponto em que encontramos a trilha da Fumacinha por cima, foram 3,3 Km de gerais vencidas na marra. Alcançamos a trilha da Fumacinha às 09:05. A trilha larga gravada de forma inconfundível no terreno, dessa vez, não deixava dúvidas de que as dificuldades de navegação em fim terminaram. Caminhamos 120 metros na trilha e decidimos esconder as cargueiras em alguns arbustos. Iríamos até o mirante da Fumacinha e retornaríamos pela mesmo caminho então não fazia sentido carregar todo o peso extra.

O cânion da Fumacinha com o Pico da Gavião ao fundo
O cânion da Fumacinha com o Pico da Gavião ao fundo

Às 09:25 alcançamos o Riachão das Pedras. Um ponto excelente para banho e já próximo da queda da Fumacinha. Infelizmente, não tínhamos tempo suficiente para curtir a água. Atravessamos o rio por falha de navegação e aproveitamos para ver a queda pela outra margem. Retornamos para a margem direita e prosseguimos a trilha, parando nos mirantes para admirar a queda da Fumacinha. A verdade é que o seu melhor visual se dá pela trilha na parte de baixo do rio. Para mim, o ponto forte da visita da parte alta é a vista para o cânion da Fumacinha. O cânion é lindo. Suas paredes estreitas criam um clima sombrio na parte inferior que me despertou o interesse de explorá-lo desde a primeira vez que estive ali. Devido ao cancelamento da descida pela Fenda, ainda não foi dessa vez que conseguir realizar esse desejo, mas espero ainda voltar para uma nova tentativa.

Morrotes arredondados surgem no horizonte como bons referenciais rumo ao Campo Alegre
Morrotes arredondados surgem no horizonte como bons referenciais rumo ao Campo Alegre
Foto: Patrícia Carvalho

O melhor visual do cânion se dá num mirante relativamente escondido e perigoso, onde é possível até enxergar o leito do rio lá embaixo. Ele fica num platô separado da parede principal do cânion por uma pequena fenda. Na minha primeira visita existia um tronco de árvore servindo como ponte. Dessa vez, notei que instalaram um ponte de madeira que deixou a passagem mais segura. Entretanto, para chegar na ponte ainda é necessário passar por um "corredor" estreito, bem na borda do cânion, onde não há margem para erro. Ali seria importante a instalação de alguma proteção adicional. Ao menos um grampo para fixação de uma corda. O grupo preferiu não arriscar a passagem e nos contentamos com os mirantes anteriores. Ainda tínhamos um bom caminho para percorrer. Às 10:15 tomamos a trilha para voltar.

Cruzando o Córrego da Onça à caminho de Campo Alegre
Cruzando o Córrego da Onça à caminho de Campo Alegre

Recuperamos nossas cargueiras às 10:50 e continuamos tocando para o Campo Alegre. Fazia 30°C e como sempre não havia nenhuma árvore para proteger. Foi o dia mais quente de caminhada na travessia. No horizonte iam se erguendo 3, 4, 5 cumes de montanhas com formatos arredondados bem similares. Certamente fazem parte ainda da Serra do Sincorá, bem mais ao sul do Batávia. Cruzamos o Córrego da Onça às 11:35 e mais uma vez tivemos que conter a vontade de tomar um banho. Dez minutos depois, começamos a avistar uma pequena cidade, certamente Cascavel. Ao meio-dia, começamos a descer uma encosta mais íngreme em direção ao vale. Um último desafio para os joelhos já cansados dos 6 dias de percurso.

Visual do povoado de (supostamente) Cascavel, antes da descida final da trilha
Visual do povoado de (supostamente) Cascavel, antes da descida final da trilha

Cerca de 20 metros antes de um córrego e 300 metros antes do fim da trilha, encontramos uma clara bifurcação. À frente, ela seguia relativamente nivelada e à esquerda descia para o córrego. Nosso tracklog indicava a esquerda, mas não tínhamos certeza de onde o motorista estaria nos esperando! Já estávamos cansados o suficiente para ir com as cargueiras até uma extremidade e ter que retornar tudo. Larguei minha mochila e resolvi correr até o final para tentar achar nossa carona. Tomei a trilha da esquerda e 70 metros à frente encontrei uma pequena estrada de terra. Que lado seguir? Mais uma vez confiei no tracklog e comecei a subir um pequeno barranco. Felizmente, cheguei a estrada de terra e lá estava pacientemente o Léo nos aguardando sentado no capô do carro.

No primeiro plano, um cafezal. Ao fundo, as belas montanhas de Campo Alegre vistas da estrada.
No primeiro plano, um cafezal. Ao fundo, as belas montanhas de Campo Alegre vistas da estrada.
Foto: Patrícia Carvalho

Não esperávamos encontrar essas bifurcações no final. Por sorte nosso tracklog indicava o caminho mais usual. Voltei para avisar o resto do grupo. Ao meio-dia e 35 minutos estavam todos na estrada. Cansados, mas muito felizes com a finalização da travessia com sucesso. Não encontrávamos com ninguém desde que saímos de Mucugê. Seja na Toca do Vaqueiro ou até mesmo na trilha da Fumacinha por cima, que é relativamente bastante visitada, não encontramos ninguém. Foi um roteiro de muitos desafios e bastante isolamento. Tocamos estrada rumo à Ibicoara e ao Buracão, encantados com as montanhas das imediações do Campo Alegre. Às 13:15, passávamos por dentro de Ibicoara. Às 14:00 estávamos no Parque Natural Municipal do Espalhado.

Visual da parte de cima da queda d'água do Buracão
Visual da parte de cima da queda d'água do Buracão

A entrada no Parque custa R$ 6,00 por pessoa e é obrigatório o acompanhamento de um guia credenciado pela associação de condutores da região. O Léo, nosso motorista, também era guia credenciado e nos conduziu nessa visita. Começamos a trilha às 14:20, num ritmo acelerado pois já estávamos no horário limite para conseguir fazer o passeio. Alcançamos a entrada do cânion, onde se entra na água, 40 minutos depois. O Buracão é um dos atrativos favoritos de muita gente, e não é à toa. É uma visita muito divertida e um local de beleza única. Essa foi a minha segunda vez no local. Infelizmente, as circunstâncias me fizeram chegar tarde em ambas as visitas e não tive a oportunidade de ver o sol iluminando o poço diretamente. Por isso também não temos nenhuma foto razoável para registrar nossa passagem por lá. Fora esse detalhe, o passeio valeu muito a pena. Nadamos por dentro do cânion e dentro do poço principal, chegando até bem perto da queda d'água. Depois voltamos levados pela correnteza.

Flutuando dentro do cânion do Buracão
Flutuando dentro do cânion do Buracão
Foto: Léo Turismo

Curtimos bastante o poço e retomamos a trilha às 16:30. Agora podíamos caminhar com mais calma, mas o sol já estava bem baixo para aproveitarmos as outras quedas e poços que existem no local. Isso para não falar que já estávamos pensando no jantar da volta à pousada. Às 17:25 estávamos de volta ao estacionamento do Parque. Tomamos a estrada, e observamos um belíssimo pôr do sol no caminho. No horizonte, o Pico do Gavião e, aos seus pés, um vale coberto por uma névoa baixa, como um grande cobertor. Se não estivesse tão tarde, Léo nos levaria num mirante que passamos na beira da estrada. Algumas pessoas estavam descendo de lá com suas lanternas de cabeça. Devem ter visto um pôr do sol incrível. Chegamos de volta à Kabana de Pedra às 19:00. Tomamos um merecido banho de chuveiro, jantamos muito bem e apagamos nas camas super confortáveis.

02/06) Ibicoara → Rio de Janeiro

Acordamos com um belo dia de sol. Aproveitamos para secar as botas, roupas e barracas que ainda estavam molhadas seja por conta caminhada imersos na vegetação úmida, seja pelas pancadas de chuva ocasionais. Nosso voo partiria de Vitória da Conquista às 16:20. Marcamos com o Léo para nos buscar em Ibicoara no final de manhã. Almoçamos num restaurante com comida à quilo, muito boa, que o Léo nos levou já nas proximidades do aeroporto. Voamos para Confins e lá embarcamos para o Rio, após mais de 4 horas de conexão no aeroporto mineiro... Nunca é fácil retornar da Chapada. Próximo de meia-noite estávamos chegando no Rio de Janeiro. Cansados mais felizes com a realização de mais uma travessia memorável na Chapada Diamantina.

Ficou para uma próxima visita a exploração da Fenda da Fumacinha, bem como a caminhada da Fumacinha por baixo. Ficamos curiosos para conhecer também as Cachoeiras do Herculano, Encantada e outras no limite leste do Parque. Os amigos do Camping Mucugê falaram muito bem dessas quedas. A verdade é que em cada visita a Chapada descobrimos novos destinos instigantes. A Chapada Diamantina definitivamente é um lugar muito especial no Brasil. Chegando em casa fui conferir o meu mapa "Trilhas e Caminhos" e buscar a trilha entre Mucugê e Ibicoara. Lá estava ela, conforme eu recordava. Reparei que a edição do meu mapa é de 2010. A última edição lançada é de 2015. Acredito que no passado essa trilha era mais utilizada e por isso constava no mapa. Por algum motivo ela caiu em desuso e, em algum momento ao longo desses cinco anos, o autor da carta decidiu remover a sua representação. Não é a toa que hoje, em 2019, não encontramos seus vestígios, fora os totens de pedra que em alguns pontos desafiam a passagem do tempo.

Uma pena o abandono dessa trilha pois foi um belo percurso e uma interessante conexão entre duas importantes cidades turísticas na Chapada. Creio que sua preservação seria útil inclusive para fomentar o turismo em Ibicoara e no sul da Chapada em geral. De qualquer forma, adorei o percurso pelo isolamento e desafios oferecidos. Já me sinto instigado a retornar e percorrer novamente aqueles caminhos. Não só o trecho final, mas todo o trajeto desde de Guiné.

Por: Ângelo Vimeney
Publicado em: 22/07/2019

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